terça-feira, 25 de agosto de 2020

RENASCIMENTO

 Este conto recebeu o 1º Lugar no Concurso de Contos da ALMUB - 2020.


Como escolher alguém para amar? A quem destinar aquela enxurrada de sentimentos que a consomem desde a adolescência, quando lhe tiraram as bonecas com a promessa de as substituírem por rosados bebês? Aqueles olhares pedindo colo, os bracinhos estendidos em sua direção e a vontade de ficar com todos para si, de preencher sua solidão com um daqueles corpinhos pequenos, tão carentes de afeto quanto ela. Tinha sido bem difícil chegar até ali sem aliança no dedo e braços fortes a ampará-la, mas ela conseguiu provar que era capaz e que tinha todas as condições de amar e educar uma criança sozinha. Acariciando um a um ela foi seguindo pelo quarto amplo cheio de bercinhos. Aos poucos seu coração ia se enlevando e não era fácil desviar os olhos daqueles rostinhos curiosos e até de alguns sorrisos. Tinha colocado na ficha do cadastro que preferia uma menina ainda bebê para ser a sua companheira na vida. E as meninas eram tantas e tão lindas! Quem poderia ajudá-la numa escolha tão decisiva e importante? Apertou a medalhinha de Nossa Senhora por debaixo da blusa e pediu orientação divina. Chegou ao fim do corredor e deu meia volta disposta a repetir o trajeto tantas vezes quanto necessário, até receber algum sinal de que ali estava o filho que a natureza não lhe dera. O coração tiquetaqueava no peito, as mãos estavam úmidas e sua bolsa chegou a escorregar do ombro. Ela sentia mais ou menos o que as mães sentem quando adentram à sala de parto. Foi no momento que se abaixou para pegar a bolsa do chão que seus olhos se encontraram. Por um instante o mundo parou de girar, sua boca entreaberta calou e as mãos procuraram aquela mãozinha pequena que segurava a grade do berço olhando fixamente para ela. O silêncio era tão profundo que dava para ouvir as paredes respirando ao redor. Segurando firmemente sua mão a criança continuava a encará-la e ela então teve a certeza de que ali estava o seu filho. Só depois constatou que era um menino, que não tinha cabelos loiros como os dela, nem correspondia às características físicas que sua imaginação criara, do mesmo jeito que nos filhos gerados não se escolhe traços, nem personalidade. A gente sente. E basta. De repente, o sol saltou sobre o telhado e o futuro chegou, avassalador, naquele corpinho franzino que se aconchegou em seu colo.

Nunca entendeu como alguém podia abandonar um filho daquele jeito. Certamente estando sob o efeito de drogas, ou com uma insensibilidade genética. Tantas mulheres fazendo sacrifícios imensos para engravidar e outras despejando no mundo crianças geradas sem intenção, frutos do prazer momentâneo e de muita irresponsabilidade. Poucas informações constavam da ficha daquele ser tão pequeno que ela trazia já aninhado em seus braços. Ele não era mais um bebê, como ela sonhara, devia ter uns quatro ou cinco anos, talvez até um pouco mais, no entanto seu corpo miúdo e seus olhos sérios evidenciavam carências de toda ordem. Ele a escolhera e ela se considerou incapaz de pensar em adotar outra criança que não aquela. Seria como abandonar seu próprio filho. Só sabia que ele tinha sido recolhido vagando sozinho pelas ruas, falando poucas palavras, sem saber de onde viera nem quem eram seus pais. Estava bem vestido, sem evidências de desnutrição ou maus tratos, todavia uma tristeza pungente o deixava mudo o dia todo e nada parecia lhe interessar. Muitas tentativas o Juizado de Menores fez para tentar encontrar sua família, no entanto foram em vão. Nada parecia se encaixar no difícil quebra-cabeça da história daquela criança que só sabia dizer seu nome: Cristóvão.

Um quarto seu, brinquedos novos, comida gostosa, roupas e, sobretudo, um amor guardado há tanto tempo fizeram com que a infância de Cristóvão fosse quase normal. Alguns pesadelos, muito medo de escuro, desconfiança e ausência de sorrisos foram aos poucos sendo neutralizados por aquela mãe só bondade que a vida lhe trouxera. Agora nenhum dos dois seria mais só no mundo. E o amor foi crescendo, envolvido em cumplicidade e coragem até se sentirem realmente pertencentes um ao outro. Vencidos os primeiros entraves na comunicação, o menino foi se destacando na escola, obtendo bons resultados e até fazendo amigos. A mãe, realizada, apertava a medalhinha de Nossa Senhora agradecendo a indicação certeira na escolha do seu filho. E assim Cristóvão cresceu, tornou-se um adolescente cheio de espinhas, com voz semitonada, fome de leão e vontade de conquistar um futuro para si. A mãe já apresentava linhas no rosto, fios de prata nos cabelos e um corpo mais lento e avantajado como a maioria das mulheres da idade dela. E eles nunca tiveram dúvidas de que eram mãe e filho e tinham mesmo que se encontrar. Muitas vezes Cristóvão pensara em sua origem biológica, em quem teriam sido seus pais, por que o tinham abandonado, no entanto, alguns meses de terapia o auxiliaram a aceitar melhor sua condição, sem revolta. Restou apenas uma curiosidade lá no fundo, geralmente sufocada pelos cálculos matemáticos e pela música de Milton Nascimento. Aprovado em primeira chamada para o curso de Engenharia de uma Universidade pública, Cristóvão se formou com brilhantismo depois de quatro anos. Não foi Orador, porque continuava pouco afeito a ser o centro das atenções e era bastante reservado, mas certamente foi um dos melhores alunos. Sua mãe chorava na plateia, com um orgulho que não cabia no peito. Seu filho era um homem, um homem admirável!

Não foi difícil para Cristóvão ser aceito numa grande empresa de construção, a partir do seu Histórico Escolar e das entrevistas. Profissionalmente, sua vida estava sendo bem resolvida e ele pretendia crescer muito em sua profissão. Tinha grandes sonhos, projetos de aperfeiçoamento no exterior e muita vontade de realizar tudo isso. Até a vida amorosa ainda não tivera espaço em sua vida, completamente direcionada ao trabalho e ao estudo.

Uma de suas primeiras missões na empresa foi a demolição de uma imponente residência, praticamente abandonada, num bairro de classe alta, onde eles iriam construir um edifício de luxo, com mais de trinta andares. Cristóvão já tinha tudo detalhado no papel e passava as informações para os operários quando seus olhos se detiveram em duas árvores quase simétricas no jardim, ainda com as cordas apodrecidas de um velho balanço preso entre elas. As madeiras coloridas da cadeirinha estavam desbotadas e semienterradas no canteiro, mas seu sangue gelou nas veias de uma forma esquisita. Olhou em torno, para o caminho calçado em direção à casa, quase tomado pelo mato e continuou com uma sensação estranha. Não entendia por que se sentia assim, ele não era dado a sentimentalismos nem a acreditar em almas do outro mundo, mas não se sentia confortável, uma angústia inexplicável estava tomando conta dele. Passou o lenço na testa, respirou fundo e procurou retomar as instruções aos peões. Envolvido no trabalho, dirigiu-se à casa, examinando as aberturas, o que seria aproveitado para vender como sucata e o que iria para descarte. Era uma mansão imponente, que certamente abrigara pessoas de alto nível e muito dinheiro. Pelo visto não havia mais ninguém para aproveitá-la, o único dono morava em outro país e queria se desfazer da residência, demonstrando pouco apego por ela e até certa pressa em se ver livre de parte do seu passado. A bela mansão não abrigara pessoas felizes e perdera o sentido maior de uma casa, que é o de conservar as risadas escorrendo pelas paredes, as vozes sussurrando no telhado, os passos estalando nos corredores e as lembranças dançando na memória, umedecendo os olhos, aquecendo o coração. Não havia ninguém para sentir isso ali.

Cristóvão andou por todo o andar de baixo distribuindo funções, em meio às marteladas e à poeira. Subiu a escada de mármore com restos de tapete nos cantos e passou a examinar a parte de cima onde o trabalho de demolição deveria começar. Num dos quartos havia uma régua colada à parede, com o desenho de um animal que parecia uma girafa. Cristóvão se aproximou, tocou o papel rasgado e novo calafrio percorreu seu corpo, ainda mais intenso. Estaria ficando doente? Que sensações eram essas, até então desconhecidas para ele? Como poderia uma casa velha e abandonada ter uma energia tão forte? Saiu dali abalado e tentou focar no trabalho.

De repente, um funcionário gritou lá do andar de baixo: - Doutor, vem só ver isso aqui! Cristóvão desceu as escadas, aliviado por se afastar da girafinha milimetrada e foi ao encontro do homem. – O que foi rapaz? - Olhe só o que encontrei debaixo dessas camadas de tinta! E passou um pano para mostrar a tampa de uma caixa de metal semelhante a um cofre, apenas com um cadeado grosso a trancá-la. Os operários pararam de bater e foram se aproximando. – Precisamos retirar a caixa da parede, diz Cristóvão. Com cuidado, pois não sabemos o que ela contém. Isso feito veio a dúvida, abrir ou não o cadeado? Cristóvão consultou seus superiores, que procuraram se comunicar com o tal parente que vendeu a casa, enquanto isso eles continuaram a demolição deixando a caixa num lugar protegido.

No fim do dia, veio a ordem. Era para abrir a caixa e verificar se continha algo de valor para remeter ao ex-dono. Os operários já se aprontavam para ir embora, tinham trocado a roupa e estavam sem as ferramentas, apenas um deles foi buscar um alicate para cortar o cadeado. A curiosidade era geral. Cristóvão tirou o cadeado cortado e abriu o ferrolho com as mãos trêmulas, ele que nem era dado a muitas emoções. Esse dia estava sendo atípico para ele. Uma força primordial o impulsionava e, ao mesmo tempo, tinha ímpetos de sair correndo dali. Dentro da caixa havia coisas inusitadas: roupas e sapatos de bebê, uma chupeta com a borracha escurecida, uma correntinha com a foto de uma criança de um lado e do outro um nome: CRISTÓVÃO.

Cristóvão cambaleou, precisando ser amparado pelos pedreiros. Não era só o nome, era tudo, desde o início, era como se ele já tivesse vivido ali, como se aquela casa já tivesse sido sua e tudo isso o deixava aturdido, sem saber o que pensar, nem como agir. Visivelmente alterado ele continuou mexendo no interior da caixa onde tinha também a foto de uma jovem com um bebê no colo e outra do menino – sim, era um menino, sentado naquele balanço do jardim na companhia de um senhor grisalho que sorria para ele. Quando parecia que o mundo iria desmoronar, Cristóvão, já em transe, encontrou um recorte de jornal lá no fundo. Ali estava escrito que a mansão tinha sido assaltada, o menino arrancado dos braços da mãe, que se suicidara meses depois de procurar e não conseguir encontrar a criança e que o avô morrera de desgosto pouco tempo depois da filha. Desde então a mansão fora fechada e ficara de herança a parentes distantes que raramente apareciam no país. As sensações que Cristóvão sentira desde o começo do trabalho demonstravam um resgate de algo que ele vivera e que ficara guardado em algum canto da memória.  Voltar àquele lugar foi como uma queda vertiginosa numa história adormecida, numa casa que anda sempre conosco e que não é feita de madeira, tijolo ou cimento, mas de emoção, lembranças e saudade!

Cristóvão foi praticamente carregado para casa pelos funcionários. Estava incrivelmente pálido e abraçando com força a caixa de metal com seus tesouros. Chegando lá a mãe veio recebê-lo aflita ao ver seu estado. – O que houve meu filho? Que cara é essa? E que caixa é essa?

- Mãe, hoje é o meu aniversário, disse ele com a voz embargada. Acabei de descobrir que eu também nasci como todo mundo e não naquele berço de orfanato. Muros de amargura caíram por terra e ele se sentiu, enfim, de posse da sua vida.  E chorou de verdade.

 

 

 

 

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