terça-feira, 13 de outubro de 2020

DEDO TORTO OU UM JARDINEIRO INFIEL

 

Açucena crescera entre aqueles canteiros, deles aprendendo a pular, atrás deles se escondendo da babá e com eles abafando os gritos da sua mãe à sua procura. Só a chegada do pai a fazia correr ao seu encontro, vez ou outra surrupiando alguma flor sem que o brutamontes do dedo torto percebesse. Era para o pai que reservava as flores, os abraços e os sorrisos, porque só ele a entendia.

Sua casa mais parecia um castelo mal assombrado, com aquelas paredes imensas, aqueles quartos vazios, aqueles silêncios e a voz esganiçada da mãe sempre reclamando de alguma coisa. Nunca tinha vivido em outra, mas não se sentia bem naquele lugar. Seu refúgio era o jardim, para onde corria à procura das flores, das borboletas, das formigas e dos passarinhos, com quem conversava, cantava, como se fossem a sua verdadeira família. Isso quando o jardineiro não resolvia infernizá-la, enxotando-a de lá com suas ferramentas, descontando nela a ira causada pelas exigências absurdas de sua mãe, que queria trocar a disposição das flores a cada estação.

- Não quero mais sentir o cheiro desses cravos pela manhã quando acordo!  Afaste esses lírios da minha janela! Eles me causam náuseas! Como conseguir comer sentindo o perfume enjoativo das magnólias?

E lá ia o homem replantar tudo, até que ela se cansasse e pedisse tudo diferente:

- Os canteiros das rosas devem ser alinhados por cor, em degradê, sem misturar nenhuma!  Quero adormecer sentindo o aroma dos jasmins! Coloque violetas em todas as janelas!

A vida dele não deveria ser fácil, talvez por isso ele fosse assim tão emburrado, silencioso, cabisbaixo. Só se alegrava cuidando das flores e ficava horas a fio tirando todas as ervas daninhas dos canteiros, arrancando folhas mortas, enxotando os passarinhos.

Às vezes, Açucena o espiava, tentando encontrar algum traço de humanidade nele. Olhava o cabelo loiro amarrado, a barba sempre por fazer, aqueles olhos claros e miúdos, enrugados pelo sol, a roupa surrada, as mãos grandes, calejadas, com as unhas pretas de mexer com a terra e sempre acabava se detendo nos pés. Enormes, compridos, saindo para fora das sandálias de  couro e – o que mais a assombrava – com o segundo dedo por cima do dedão. Afastava logo o olhar porque aquilo lhe dava asco.

A menina não tinha amigos, o sítio onde moravam ficava retirado e a casa só recebia gente nas festas que a mãe promovia, enlouquecendo os empregados com suas exigências. O máximo que fazia  era olhar lá de cima da escada, até que a babá a levava à força para a cama e ficava contando aquelas histórias sem graça, entre bocejos, louca que ela dormisse para poder, também, espiar as mulheres elegantes e perfumadas e os homens engravatados circulando pelos salões. Na cozinha, conseguia provar algum petisco e até beber as sobras de vinho dos cálices recolhidos.

Assim a vida de Açucena transcorreu, sem maiores acontecimentos, até que chegou a hora da escola e sua mãe optou por um colégio interno, que a preparasse para a vida de herdeira rica, lhe ensinasse línguas e polisse seus modos provincianos, domando aquela natureza grotesca que a fazia viver entre os canteiros do jardim, falando com  borboletas.

Saudades a menina sentiu só do pai, chorou no abraço e se consolou com a promessa de muitas visitas, que nem foram tantas assim.

Já moça, nas férias, conseguiu permissão para levar consigo uma colega do internato, quase uma amiga, não fossem as grandes diferenças de temperamento entre elas. Enquanto Açucena era observadora e calada, Orquídea parecia um vulcão sempre prestes a entrar em erupção. Mesmo assim se entendiam.

Orquídea vasculhou cada metro quadrado da propriedade, perguntando tudo, espiando atrás das cortinas e dos móveis, enlouquecendo o jardineiro com suas dúvidas e curiosidades botânicas, irritando a cozinheira ao destampar as panelas no fogão e fazendo com que a mãe de Açucena antipatizasse instantaneamente com ela.

O pai, sempre mais paciente e compreensivo, ainda lhe respondia parte das perguntas, que surgiam aos borbotões:

- Com quem Açucena se parece, já que vocês são baixos, morenos e ela é assim espigada e aloirada?  Por que a senhora tem tantas flores se nunca a vejo cheirá-las ou colhê-las?  O que tem naquele armário trancado no porão?  Por que a família de vocês nunca vem aqui?

E assim prosseguia o interrogatório dia após dia.

Nas férias seguintes Açucena não recebeu autorização para trazer a amiga e, assim, passou as férias escolares como quando era criança, entre os canteiros de flores, sempre com a terra revolvida pelas trocas de mudas, no imenso jardim inundado de borboletas e de silêncio, povoado apenas por aquele homem estranho, cada vez mais sorumbático.

A mocinha estava terminando o Colegial quando chegou a notícia que abalou sua vidinha sem graça para sempre: seu pai sofrera um grave acidente e se encontrava entre a vida e a morte. Mesmo um mundinho pequeno como o seu, quando desaba, causa estragos profundos. Ela nunca mais seria a mesma sem os braços do seu pai garantindo todo o carinho e segurança que tinha na vida.

Chegou ao sítio um dia antes da morte do pai, que já não falava e mal abria os olhos. Ele apertou forte a sua mão, como a lhe dar forças para continuar vivendo e se foi.

Açucena não saía mais do jardim. Mal tocava na comida, dormia aos pouquinhos e acordava sobressaltada, tentando imaginar que aquilo era um pesadelo; emagrecia a olhos vistos e se recusava a voltar para a escola.

Numa tarde em que seus olhos ardiam de chorar, um vulto se aproximou dela e lhe ofereceu uma rosa branca. Mal teve tempo de levantar os olhos para ver quem era e ele já se afastara, com aquele andar pesado das sandálias de couro e a dificuldade no pisar pelo dedo aleijado. Não disse uma palavra, ela tampouco.

Açucena, quando não estava no jardim, refugiava-se no porão, entre as coisas do pai, para senti-lo mais próximo. Sentia seu cheiro nas roupas de montaria, nos charutos da gaveta da escrivaninha, gostava de ver sua letra nos recibos, nas fotos, nas cartas e passou a ler tudo que fora dele, conhecendo melhor aquele que fora a pessoa mais importante da sua vida. Assim, ficou sabendo sobre seus avós, seus tios, os primos que ela nunca vira, até que se deparou com uma carta diferente, escrita à mão num papel de linho, com uma letra redonda de mulher e que a deixou intrigada. A mulher, que se chamava Laura, parecia ter tido uma relação bem íntima com seu pai. A carta não estava datada, portanto, Açucena não conseguiu saber se tinha sido escrita antes ou depois dele conhecer sua mãe. Algumas palavras ficaram martelando seu pensamento, como “ser superior não é ser bobo”, “muita generosidade para pouco merecimento”, “ consertar um erro com outro” e mais algumas frases nesse tom.

Açucena guardou a carta no bolso e volta e meia relia algum pedaço para tentar entender o que aquela Laura queria dizer a seu pai. Certo dia, ousou perguntar à mãe quem era Laura. Ela se mostrou pouco surpresa, quase indiferente e disse apenas: uma sirigaita que vivia atrás do seu pai.

- Mas foi namorada dele antes de você? Continuou a menina.

- Antes não, depois.

- Como depois? Quando vocês já eram casados?

- Sim. Seu pai não era o santo que você pensava, mas deixa o espírito dele em paz, já foi.

Agora mesmo que Açucena não teria sossego enquanto não descobrisse mais coisas. Queria saber mais, saber tudo, conhecer aquela Laura e ouvir dela porque seu pai tinha sido bobo. Procurou o endereço no envelope e escreveu essas perguntas. A resposta demorou uma eternidade de duas semanas, mas chegou. Lacônica. “Pergunte à sua mãe.”

Açucena não se atreveu a perguntar, pois não queria que a mãe soubesse que ela tinha procurado um contato com a provável amante do pai. Escreveu então para uma das tias que se correspondia com o pai e nunca tinha vindo à sua casa, nem mesmo no enterro do irmão. Um mês se passou até chegar um bilhete escrito à máquina dizendo que a única pessoa que lhe importava naquela casa, o único sangue do seu sangue já se fora e que a melhor pessoa para tirar suas dúvidas estava ao seu lado.

Mais uma vez, a mãe estava remodelando o jardim, num afã doentio de trocar flores e perfumes de lugar, enlouquecendo o pobre homem, cada vez mais curvado.

- Mãe, por que os parentes do papai nunca vieram aqui?

A mãe se virou para ela enfurecida:

- Deve ter sido por sua causa! Para não ter que lhe ver!

- Por mim? Mas por quê?

- Olha menina, quem mexe em vespeiro acaba picada! Se não parar com essas perguntas todas pode acabar descobrindo o que vai lhe deixar ainda mais infeliz do que já é.

- Mas eu tenho o direito de saber! É sobre o meu pai!

- Seu pai, será que era mesmo seu pai?

Açucena gelou. Sentiu uma tontura e sentou no canteiro.

A mãe continuou. – Ou você acha que ia ficar barato o casinho dele com aquela Laura? Teve o troco que mereceu!

- E eu, o que eu tenho a ver com isso?

- Não sei. O fato é que engravidei nessa época e não sei ao certo de quem afinal você é filha.

Açucena esmagou as violetas com a mão e só conseguiu levantar amparada por aquele molambo que vagava pelo jardim desde que aprendera o caminho das flores.

Muitos anos depois, quando já nem lembrava mais da casa e das pessoas que deixara, sentada numa espreguiçadeira com seu gato no colo, apoiou as pernas cansadas num banquinho, tirou as pantufas e ficou olhando seus pés.

Os segundos dedos principiavam a cobrir o dedão.

 


 

 

 


Um comentário:

PAULO COIMBRA disse...

MUITO BOM TEU TEXTO. Começa como dedo torto e termina como jardineiro infiel.
Excelente.