sábado, 5 de março de 2016

A GULA




                          “Do latim gula é o desejo insaciável em geral por comida, bebida, estando também relacionado ao egoísmo humano: querer ter sempre mais e mais, não se contentando com o que já tem; uma forma de cobiça. Ela seria controlada pelo uso da virtude da temperança. Para algumas denominações cristãs, é considerado um dos sete pecados capitais. Entretanto, a gula não é considerada um pecado universalmente; dependendo da cultura, ela pode ser vista como um sinal de status.”
 
                       Aprendera que quase tudo era relativo e que até a verdade adquiria diferentes faces em outros contextos. Seu apetite voraz pela vida, pelos temperos e pelos homens a uns soaria como pecado, a outros como virtude. E dava de ombros.
                      Longe ia o tempo em que pulava da cama mal o sol trespassava sua cortina, tomava um café apressado e corria para o trabalho. Tão longe que  parecia pertencer a outra pessoa, não a ela.
                     Hoje, a alvorada apenas sinalizava que deveria morder aquelas frutas perfumadas da bandeja ao lado e dividir seu sumo com aquela boca apetitosa que se enroscava em seu travesseiro. Depois disso, invadia o pecado da luxúria sem restrições até cair para o lado, exausta, com aquele sorriso malemolente de quem revisitou o paraíso e voltou de lá com uma fome de leoa.
                    Com as mãos cheias de brioches corria descalça e nua até a cozinha, onde preparava um banquete com muitos ovos e potes de mingau de aveia rescendendo a canela.  Fartava-se lentamente, equilibrando a bandeja nas coxas roliças e devorando cada bocado diante dos olhos gulosos do parceiro. Uma orgia de mordidas, beijos, aromas e fluidos. Insaciáveis os dois!
                     Muito, mas muito tempo depois, com a alma e o estômago exauridos, mergulhavam os dois na banheira de espuma, cercados por nozes, castanhas, avelãs, amêndoas e taças de vinho borbulhante. Os sussurros, as massagens, os olhares de ressaca faziam do banho um processo longo e delicioso, difícil de terminar.
                     Toalhas felpudas, roupões macios, cabelos molhados e o perfume da paleta de cordeiro assando lentamente no molho de hortelã. Batatas douradas deslizando na alcaparra, tomates recheados, torradas embebidas em puro azeite, tudo indicava mais uma festa para o olfato e o paladar. Fartaram-se.
                     Mãos deslizantes dos nacos de carne colados ao osso, bocas úmidas dos temperos e a cobiça retornando, avassaladora. O tapete convidativo, as almofadas jogadas, os cintos se soltando, os seios pulando livres para fora do roupão e, mais uma vez, os corpos gulosos se saborearam.
                    O fogo crepitando na lareira embalando o sono e o cheiro dos pães e bolos assando a despertá-los. Grossas fatias de pão quente inundadas de geléia, a manteiga derretendo e adentrando a massa, enchendo-a de sabor, o mel puro escorrendo nos cantos da boca e o chocolate quente fumegando nas grossas canecas de porcelana.
Troca de sabores, de mordidas, de temperos, de fluidos. O cheiro úmido e quente dos corpos inundando a sala e uma fome que não sacia, um desejo implacável de querer sempre mais e mais.
                     A noite vai se aproximando das janelas semiabertas, o vento frio enrijece os troncos desnudos, arrepiando os pelos e a pele, impulsionando ao abraço. Fome. De comida, de vida, de tudo.
                     Os aspargos borbulhantes no creme encorpado, toques de noz moscada boiando nos cantos do caldeirão. O queijo derretido envolvendo a massa, apossando-se dela, misturando-se definitivamente ao seu sabor delicado. Grossos bifes estalando na frigideira e liberando um sumo dourado, que escorre na boca a cada mordida. Línguas lambendo queixos, olhares mortiços, de pleno gozo com a refeição e com o que estava por vir, estômagos saciados, languidamente entregues na cama monumental. Mãos que se procuram, sem abrir os olhos.
                        Como se mastigassem ainda o bife macio, aos poucos se entregam mais uma vez aos pecados da luxúria, tão próximos da gula que chegam a se confundir com ela.
                        O dia termina, restam poucas horas, tempo suficiente para uma imersão total naquela montanha de chocolate, de onde sobressaem vermelhos morangos e tenras uvas, embebidos em Amarula e salteados com cálices de licor de anis.
                        Refeitos, eles se olham, besuntam-se fartamente no chocolate que restou e se deliciam com cada milímetro de pele adocicada. Como náufragos, agarram-se sofregamente um ao outro, temendo perder qualquer partícula de prazer e de comida e se fundem num só corpo, voraz e saciado.
                        Satisfeita? Só por hoje. Amanhã terá mais, talvez melhor, em outra companhia. Não seria pecado se tivesse limites e ela, agora, vivia para pecar.
                        Meia noite. O dia termina. A gula entra em recesso, até que, pela cortina, filtre-se o primeiro raio de sol.






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