“Do latim gula
é o desejo
insaciável em geral por comida, bebida,
estando também relacionado ao egoísmo humano: querer ter sempre mais e mais,
não se contentando com o que já tem; uma forma de cobiça. Ela
seria controlada pelo uso da virtude da temperança. Para algumas denominações cristãs, é considerado um dos sete pecados capitais. Entretanto, a gula não é considerada um pecado universalmente;
dependendo da cultura, ela pode ser vista como um sinal de status.”
Aprendera que quase tudo era relativo e que até a
verdade adquiria diferentes faces em outros contextos. Seu apetite voraz pela
vida, pelos temperos e pelos homens a uns soaria como pecado, a outros como
virtude. E dava de ombros.
Longe ia o tempo em que pulava da cama mal o sol
trespassava sua cortina, tomava um café apressado e corria para o trabalho. Tão
longe que parecia pertencer a outra
pessoa, não a ela.
Hoje,
a alvorada apenas sinalizava que deveria morder aquelas frutas perfumadas da
bandeja ao lado e dividir seu sumo com aquela boca apetitosa que se enroscava em
seu travesseiro. Depois disso, invadia o pecado da luxúria sem restrições até
cair para o lado, exausta, com aquele sorriso malemolente de quem revisitou o
paraíso e voltou de lá com uma fome de leoa.
Com as
mãos cheias de brioches corria descalça e nua até a cozinha, onde preparava um
banquete com muitos ovos e potes de mingau de aveia rescendendo a canela.
Fartava-se lentamente, equilibrando a bandeja nas coxas roliças e devorando
cada bocado diante dos olhos gulosos do parceiro. Uma orgia de mordidas,
beijos, aromas e fluidos. Insaciáveis os dois!
Muito,
mas muito tempo depois, com a alma e o estômago exauridos, mergulhavam os dois na
banheira de espuma, cercados por nozes, castanhas, avelãs, amêndoas e taças de
vinho borbulhante. Os sussurros, as massagens, os olhares de ressaca faziam do
banho um processo longo e delicioso, difícil de terminar.
Toalhas
felpudas, roupões macios, cabelos molhados e o perfume da paleta de cordeiro
assando lentamente no molho de hortelã. Batatas douradas deslizando na
alcaparra, tomates recheados, torradas embebidas em puro azeite, tudo indicava
mais uma festa para o olfato e o paladar. Fartaram-se.
Mãos
deslizantes dos nacos de carne colados ao osso, bocas úmidas dos temperos e a
cobiça retornando, avassaladora. O tapete convidativo, as almofadas jogadas, os
cintos se soltando, os seios pulando livres para fora do roupão e, mais uma
vez, os corpos gulosos se saborearam.
O fogo
crepitando na lareira embalando o sono e o cheiro dos pães e bolos assando a
despertá-los. Grossas fatias de pão quente inundadas de geléia, a manteiga
derretendo e adentrando a massa, enchendo-a de sabor, o mel puro escorrendo nos
cantos da boca e o chocolate quente fumegando nas grossas canecas de porcelana.
Troca
de sabores, de mordidas, de temperos, de fluidos. O cheiro úmido e quente dos
corpos inundando a sala e uma fome que não sacia, um desejo implacável de
querer sempre mais e mais.
A
noite vai se aproximando das janelas semiabertas, o vento frio enrijece os
troncos desnudos, arrepiando os pelos e a pele, impulsionando ao abraço. Fome.
De comida, de vida, de tudo.
Os
aspargos borbulhantes no creme encorpado, toques de noz moscada boiando nos
cantos do caldeirão. O queijo derretido envolvendo a massa, apossando-se dela,
misturando-se definitivamente ao seu sabor delicado. Grossos bifes estalando na
frigideira e liberando um sumo dourado, que escorre na boca a cada mordida.
Línguas lambendo queixos, olhares mortiços, de pleno gozo com a refeição e com o
que estava por vir, estômagos saciados, languidamente entregues na cama
monumental. Mãos que se procuram, sem abrir os olhos.
Como
se mastigassem ainda o bife macio, aos poucos se entregam mais uma vez aos
pecados da luxúria, tão próximos da gula que chegam a se confundir com ela.
O dia
termina, restam poucas horas, tempo suficiente para uma imersão total naquela
montanha de chocolate, de onde sobressaem vermelhos morangos e tenras uvas,
embebidos em Amarula e salteados com cálices de licor de anis.
Refeitos,
eles se olham, besuntam-se fartamente no chocolate que restou e se deliciam com
cada milímetro de pele adocicada. Como náufragos, agarram-se sofregamente um ao
outro, temendo perder qualquer partícula de prazer e de comida e se fundem num
só corpo, voraz e saciado.
Satisfeita?
Só por hoje. Amanhã terá mais, talvez melhor, em outra companhia. Não seria
pecado se tivesse limites e ela, agora, vivia para pecar.
Meia
noite. O dia termina. A gula entra em recesso, até que, pela cortina, filtre-se
o primeiro raio de sol.
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