quinta-feira, 20 de agosto de 2015

ROMANCE ESCATOLÓGICO





Ele a amava desde a adolescência, mas ela só aprendera a retribuir este amor depois de adulta. Poderia ter sido um casamento feliz, já que tinham tantas afinidades, entretanto, a maturidade precoce daquela menina não se estendia às questões sentimentais. Vivia desfalecendo diante de olhos claros, portes principescos, assemelhados aos pôsteres de artistas hollywoodianos que enfeitavam as largas paredes do seu quarto no casarão antigo da família. Como não ser romântica na metade do século XX? Assistindo Sissi, O Vento Levou, A Noviça Rebelde e ouvindo Ray Connif, Roberto Carlos, Altemar Dutra, Frank Sinatra?
Nossa protagonista era filha única de um casal estrangeiro e tinha o dia completamente tomado por todas as habilidades que precisava desenvolver, como descendente de orientais que era. A obediência, no entanto, não era sua virtude mais forte e ela experimentava cigarros, goles de martinis e beijos roubados na saída das escapadelas noturnas, sob o pretexto de se reunir com as colegas para fazer trabalhos escolares e, assim, ver as estrelas e namorar os rapazes mais velhos, que já estudavam à noite.
Nesse contexto, contracenou com seu antagonista pela primeira vez, quando ele, oriundo de uma cidade maior, viera divulgar sua universidade no colégio dela. Não havia reparado nele, porque sua aparência muito comum tornava-o vulgar a seus olhos exigentes. Soubera da comitiva, reunida no salão nobre da escola, mas preferira continuar sentada ao sol, lendo Clarissa, de Érico Veríssimo.
- Não sabe que ler no sol faz mal para a visão?
- Não vê que estou usando óculos escuros?
Este foi o primeiro e fulminante diálogo de um casal que demorou anos para se formar e, quando se formou, o fez nas sombras, usando desculpas e disfarces para não alterar o andamento de sua vida.
Ele era um mestre na arte de seduzir e fazer com que uma mulher, mesmo tão menina, se sentisse pairando sobre as outras, superior a elas e seus amores terrenos, medíocres.  Escrevia cartas literalmente por metros, colando folhas e folhas datilografadas com capricho; enviava orquídeas por ônibus que viajavam em estradas empoeiradas, uma vez que era ainda o meio de transporte mais rápido para aquela cidadezinha perdida no mapa; pagava fortunas de telefone (coisa rara na época) para ouvi-la tocar violino e, mesmo assim, ela não conseguia amar seus olhos escuros, seu cabelo crespo, sua baixa estatura. As amigas e a mãe se derretiam na leitura das cartas, choravam diante de sua enorme caixa de correspondência, emocionadas e copiando trechos para enviar aos namorados, enquanto ela, do alto dos seus quinze anos, só pensava nos outros amores, mais coloridos e palpáveis.
Passaram-se os anos, cada um fez sua vida, sua profissão, sua família e perderam-se de vista. Até que o acaso, sem ter nada melhor para fazer, decidiu colocá-los frente a frente, como forma de testar suas reminiscências. Ele a achou igualzinha, ela o achou muito melhor do que antes, com aquele ar maduro, os fios prateados nas têmporas, a voz grave e o brilhantismo de sempre, agora engalanado por uma sólida carreira constituída e um considerável patrimônio. De órfão esforçado passara a “doutor”, respeitado na sua capacidade; e ela, de menina prendada e cheia de mimos, agora dava um duro danado, numa profissão pouco reconhecida e valorizada, desconfortável num casamento muito aquém do imaginado. O jogo se invertera. Menos o sentimento dele por ela, que parecia intacto.
Protegidos pela distância, uma vez que ela fora morar numa cidade grande, bem longe da dele, nenhuma grande ruptura aconteceu. Apaixonado e inteligente, ele soube forjar mil e um pretextos para encontrá-la e ela, quem diria, descobriu-se apaixonada por seu eterno galanteador desprezado, arrependida de não ter dado ouvidos à sua mãe e sentindo as agulhadas do ciúme e da insatisfação.
O romance solidificava-se e assuntos sérios começavam a ser discutidos, como separação, mudanças e coisas do gênero. Para comemorar mais um ano do reencontro, o casal de amantes conseguiu agendar uma linda viagem, com direito a hotéis suntuosos, orgias gastronômicas e juras de amor eterno, agora compartilhado.
Uma coisa a perturbava nessas viagens: a total falta de intimidade entre eles, que, de repente, passavam a dividir uma suíte como se tivessem vivido sempre juntos. Ficava embaraçada com a falta de chave na porta do banheiro e constrangida quando um dos dois precisava encerrar-se nele, fugindo ao ritmo romanesco que imprimiam aos encontros.
Foi então que, nesse encontro derradeiro, depois de uma noite inesquecível de comidas e costumes germânicos, o pobre Romeu deve ter sentido as agulhadas do veneno dos Capulleto e resistido heroicamente até romper a madrugada, anunciando a hora do regresso à vida comum dos mortais. Pouco falou, quase não se mexeu, transpirou gelado, sem se queixar.
A romântica e saltitante Julieta, alheia ao martírio do amante, resolveu pregar-lhe uma peça inocente, para ficar de lembrança dos dias passados. Avisou que desceria ao saguão do hotel antes dele, para ver determinado souvenir na recepção. Abriu a porta, encostou-se na parede do corredor interno da suíte, e tornou a fechá-la.
O desafortunado amante, imaginando-se livre com sua dor, reuniu forças para expulsar de si toda aquela fermentação que lhe dilacerava as entranhas e ouviu, apavorado, o ruído ensurdecedor de um longo e forte rugido libertando-se de seu ventre avolumado e invadindo de pesado aroma o quarto repleto de belas palavras de amor. Que alívio indescritível...
Com a expressão serena e feliz de volta ao rosto, como sempre ficava quando estava perto da sua amada, preparou-se para descer ao encontro dela. Chegando à porta, todavia, detém-se horrorizado! Lá estava, escondida, a sua Julieta, testemunhando a revolta das vísceras e seus efeitos, ruborizada, sem jeito, desencantada.
O que foi dito nenhum dos dois recorda, pois foram palavras vãs, ditas da boca para fora, apenas para encerrar o encontro de forma civilizada. O que se sabe é que nunca mais se viram, nem se escreveram ou telefonaram. O amor romântico não tem lugar para escatologias; tanto derretimento e melindres não suportaram a condição humana, tal como ela é. Era um amor para ser apenas escrito, idealizado, sonhado; caso contrário, assemelhar-se-ia aos demais e perderia a graça.




Conto do meu livro de contos "Decifra-me".

Nenhum comentário: