Ele a amava desde a adolescência, mas
ela só aprendera a retribuir este amor depois de adulta. Poderia ter sido um
casamento feliz, já que tinham tantas afinidades, entretanto, a maturidade
precoce daquela menina não se estendia às questões sentimentais. Vivia
desfalecendo diante de olhos claros, portes principescos, assemelhados aos
pôsteres de artistas hollywoodianos que enfeitavam as largas paredes do seu
quarto no casarão antigo da família. Como não ser romântica na metade do século
XX? Assistindo Sissi, O Vento Levou, A Noviça Rebelde e ouvindo Ray Connif, Roberto Carlos, Altemar
Dutra, Frank Sinatra?
Nossa protagonista era filha única de
um casal estrangeiro e tinha o dia completamente tomado por todas as
habilidades que precisava desenvolver, como descendente de orientais que era. A
obediência, no entanto, não era sua virtude mais forte e ela experimentava
cigarros, goles de martinis e beijos roubados na saída das escapadelas
noturnas, sob o pretexto de se reunir com as colegas para fazer trabalhos
escolares e, assim, ver as estrelas e namorar os rapazes mais velhos, que já
estudavam à noite.
Nesse contexto, contracenou com seu
antagonista pela primeira vez, quando ele, oriundo de uma cidade maior, viera
divulgar sua universidade no colégio dela. Não havia reparado nele, porque sua
aparência muito comum tornava-o vulgar a seus olhos exigentes. Soubera da
comitiva, reunida no salão nobre da escola, mas preferira continuar sentada ao
sol, lendo Clarissa, de Érico
Veríssimo.
- Não
sabe que ler no sol faz mal para a visão?
-
Não vê que estou usando óculos escuros?
Este foi o primeiro e fulminante
diálogo de um casal que demorou anos para se formar e, quando se formou, o fez
nas sombras, usando desculpas e disfarces para não alterar o andamento de sua
vida.
Ele era um mestre na arte de seduzir e
fazer com que uma mulher, mesmo tão menina, se sentisse pairando sobre as
outras, superior a elas e seus amores terrenos, medíocres. Escrevia cartas literalmente por metros,
colando folhas e folhas datilografadas com capricho; enviava orquídeas por
ônibus que viajavam em estradas empoeiradas, uma vez que era ainda o meio de
transporte mais rápido para aquela cidadezinha perdida no mapa; pagava fortunas
de telefone (coisa rara na época) para ouvi-la tocar violino e, mesmo assim,
ela não conseguia amar seus olhos escuros, seu cabelo crespo, sua baixa
estatura. As amigas e a mãe se derretiam na leitura das cartas, choravam diante
de sua enorme caixa de correspondência, emocionadas e copiando trechos para
enviar aos namorados, enquanto ela, do alto dos seus quinze anos, só pensava nos
outros amores, mais coloridos e palpáveis.
Passaram-se os anos, cada um fez sua
vida, sua profissão, sua família e perderam-se de vista. Até que o acaso, sem
ter nada melhor para fazer, decidiu colocá-los frente a frente, como forma de
testar suas reminiscências. Ele a achou igualzinha, ela o achou muito melhor do
que antes, com aquele ar maduro, os fios prateados nas têmporas, a voz grave e
o brilhantismo de sempre, agora engalanado por uma sólida carreira constituída
e um considerável patrimônio. De órfão esforçado passara a “doutor”, respeitado
na sua capacidade; e ela, de menina prendada e cheia de mimos, agora dava um
duro danado, numa profissão pouco reconhecida e valorizada, desconfortável num
casamento muito aquém do imaginado. O jogo se invertera. Menos o sentimento
dele por ela, que parecia intacto.
Protegidos pela distância, uma vez que
ela fora morar numa cidade grande, bem longe da dele, nenhuma grande ruptura aconteceu.
Apaixonado e inteligente, ele soube forjar mil e um pretextos para encontrá-la
e ela, quem diria, descobriu-se apaixonada por seu eterno galanteador
desprezado, arrependida de não ter dado ouvidos à sua mãe e sentindo as
agulhadas do ciúme e da insatisfação.
O romance solidificava-se e assuntos
sérios começavam a ser discutidos, como separação, mudanças e coisas do gênero.
Para comemorar mais um ano do reencontro, o casal de amantes conseguiu agendar
uma linda viagem, com direito a hotéis suntuosos, orgias gastronômicas e juras
de amor eterno, agora compartilhado.
Uma coisa a perturbava nessas viagens:
a total falta de intimidade entre eles, que, de repente, passavam a dividir uma
suíte como se tivessem vivido sempre juntos. Ficava embaraçada com a falta de
chave na porta do banheiro e constrangida quando um dos dois precisava
encerrar-se nele, fugindo ao ritmo romanesco que imprimiam aos encontros.
Foi então que, nesse encontro
derradeiro, depois de uma noite inesquecível de comidas e costumes germânicos,
o pobre Romeu deve ter sentido as agulhadas do veneno dos Capulleto e resistido
heroicamente até romper a madrugada, anunciando a hora do regresso à vida comum
dos mortais. Pouco falou, quase não se mexeu, transpirou gelado, sem se
queixar.
A romântica e saltitante Julieta,
alheia ao martírio do amante, resolveu pregar-lhe uma peça inocente, para ficar
de lembrança dos dias passados. Avisou que desceria ao saguão do hotel antes
dele, para ver determinado souvenir na
recepção. Abriu a porta, encostou-se na parede do corredor interno da suíte, e
tornou a fechá-la.
O desafortunado amante, imaginando-se
livre com sua dor, reuniu forças para expulsar de si toda aquela fermentação
que lhe dilacerava as entranhas e ouviu, apavorado, o ruído ensurdecedor de um
longo e forte rugido libertando-se de seu ventre avolumado e invadindo de
pesado aroma o quarto repleto de belas palavras de amor. Que alívio
indescritível...
Com a expressão serena e feliz de
volta ao rosto, como sempre ficava quando estava perto da sua amada, preparou-se
para descer ao encontro dela. Chegando à porta, todavia, detém-se horrorizado!
Lá estava, escondida, a sua Julieta, testemunhando a revolta das vísceras e
seus efeitos, ruborizada, sem jeito, desencantada.
O que foi dito nenhum dos dois
recorda, pois foram palavras vãs, ditas da boca para fora, apenas para encerrar
o encontro de forma civilizada. O que se sabe é que nunca mais se viram, nem se
escreveram ou telefonaram. O amor romântico não tem lugar para escatologias;
tanto derretimento e melindres não suportaram a condição humana, tal como ela
é. Era um amor para ser apenas escrito, idealizado, sonhado; caso contrário,
assemelhar-se-ia aos demais e perderia a graça.
Conto do meu livro de contos "Decifra-me".
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