quinta-feira, 30 de julho de 2015

RESPIRANDO SAUDADE




“Quando alguém mergulha nas próprias recordações, abre uma porta para o passado; a estrada lá dentro tem muitas ramificações e a cada vez o trajeto é diferente.”
XINRAN


                    - Vó, do que você sente saudade? Perguntam aqueles olhos expressivos, emoldurados pelo rosto angelical e o queixo altivo, desafiador.
                    - Ah, minha neta, quer mesmo saber? Então, puxe o fôlego até o fim e ouça...
                    Tenho saudades de mim, daquela menina curiosa que prestava atenção em tudo e parecia querer devorar o mundo de uma só vez; das pessoas que moravam na casa, cada uma com seu jeito, suas manias, sua voz, sua forma de pensar e até do atrito que, vez por outra, acontecia entre elas; de ver meu pai tomando chimarrão na cozinha quando eu levantava sonolenta para o colégio; da minha mãe de camisola e roupão, caderno e lápis na mão, tomando minha lição até que eu respondesse tudo certo, sem gaguejar; da minha avó criando delícias na cozinha e deixando montanhas de louça suja para a empregada lavar; dos cachorros no pátio, no tempo em que cachorro ainda tinham vida de cachorro; dos gatos da minha mãe procurando os raios de sol para se espicharem; do meu irmão mais velho sempre implicando comigo e com tudo o que eu fazia ou dizia; do meu irmão mais novo sempre grudado, sempre junto, como um filho apenas quatro anos mais moço; dos três pátios que havia na minha casa, cada um com suas delícias - flores no primeiro, frutas no segundo e verduras no terceiro; da minha turma da Mariz e Barros sempre brincando, sempre brigando, sempre subindo em árvores e sempre pulando muros; da garagem da casa, onde não havia carros, mas onde a imaginação das crianças da casa podia se materializar de diversas maneiras, como num enorme navio construído pelo Tibério e onde nossa fantasia nos levava a navegar por horas a fio; ou quando a mesma garagem virava palco e nela meu irmão Eduardo apresentava peças que ele mesmo escrevia, produzia e representava; ou ainda servia para a banda da turma 007 ensaiar, além de existir também uma mesa de sinuca e outra de jogos de botão, sendo, portanto, a garagem a peça fundamental da casa para seus menores habitantes; saudades do meu piano, num tempo sem televisão nem computador, quando eu tinha tempo e disposição de passar horas a fio descobrindo sons e aprimorando a técnica; de dançar balé naquelas salas amplas, ao redor do meu irmão que estudava na grande mesa redonda e ficava escolhendo os passos que queria me ver realizar; de esperar o carteiro, sempre com muitas cartas perfumadas, de inesquecíveis amores platônicos e amigas distantes; de sentar lá fora quando a noite chegava e ficar ouvindo as histórias do meu pai e aprendendo o nome das constelações; saudade - muita! – de ler sem óculos e não ter medo de um dia ficar cega; de gastar quase uma caixa de grampos para domar a vasta cabeleira ondulada e rebelde; de colocar alfinetes de segurança no cós das calças compridas para não caírem depois de pouquíssimos dias de regime para emagrecer; dos telegramas – pagos por palavra – que abreviavam a espera por uma carta; dos sapatos de verniz (especialmente de um par de sapatos vermelhos), que sacrificavam os pés, mas rodopiavam a noite inteira nos bailes e reuniões dançantes; do bando de normalistas – saia azul, blusa branca e gravata – caminhando pelas ruas e praças em direção à escola; das paqueras no Quiosque e ao redor da praça central; das mãos dadas no cinema; dos cadernos cheios de iniciais e corações; do desfalecimento dos primeiros beijos; da Valsa do Imperador no baile de debutantes; da Marcha Nupcial no tapete vermelho; de amamentar os filhos, jurando protegê-los para sempre; dos planos imensos; dos sonhos grandiosos; de achar que daria tempo de sobra para tudo; daquele coração puro e dos olhos não maculados pelas barbáries e desmandos do mundo moderno, enfim, da pessoa que nunca consegui ser.
                        -Ufa!
                        -Respire!
                        -E então? Entendeu?!




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