Vivo em uma capital,
Florianópolis, há mais de trinta anos, entretanto, nunca abandonei os hábitos
interioranos.
Nasci e me criei numa pequena cidade do Rio Grande do Sul
chamada Alegrete. Minha alma ainda mora lá, no mesmo quarto amplo do casarão
dos meus avós, com todas as lembranças da meninice.
Minha mãe é a guardiã dos tesouros do passado, mantendo
intacta e conservada a casa de sua infância, onde trouxe seus filhos ao mundo e
velou seus mortos. Mesmo de longe ela gerencia sua ampla morada, sempre pronta
para acolher as visitas da matriarca, dos filhos, netos e bisnetos. As
lembranças da casa cheia, do vozerio das crianças, das risadas, não parecem
incomodá-la e é lá que ela se sente melhor, com as paredes cheias de quadros,
as roseiras desfilando sua beleza e os dois jasmineiros, plantados por sua
bisavó alemã, inundando de perfume a ampla varanda.
Embora os filhos tenham construído suas vidas nas grandes
cidades, é para lá que correm quando querem se encontrar, inclusive com eles
mesmos. Sobretudo para recordar e, assim, voltar a viver.
Festas de 15 anos, noivados, casamentos, encontros
políticos, enterros, tudo aconteceu debaixo do pé direito alto do solar da
Mariz e Barros.
Brincadeiras de esconde-esconde aconteciam no quarteirão
inteiro, pois saltar muros era, para as crianças da época, tão simples quanto
subir escadas.
Frutas verdes castigando os lábios, roupas manchadas, pernas
e braços cheios de arranhões e aquele brilho maroto nos olhos de crianças
livres.
Cinema aos domingos, com o tropel dos cavalos acompanhado
pelo bater dos pés dos pequenos espectadores. Beijos roubados, bilhetes
escondidos, amigas de braços dados andando ao redor da praça, exibindo-se para
os rapazes.
Os doces em calda da avó, aquela tentação em compoteiras,
servida com parcimônia a quem terminasse a refeição.
Os “causos” do pai, contados pausadamente, ele sentado em
uma espreguiçadeira, com a cuia de mate em uma mão e o palheiro aceso na outra,
o olhar perdido no horizonte, revivendo cada história.
A mãe lendo Monteiro Lobato na porta que ficava aberta entre
o quarto dos filhos para que todos pudessem ouvir. E ela ainda passando a ferro
quente os lençóis da gurizada nas noites de frio intenso e amaciando a manteiga
para espalhar no pão das crianças sonolentas e atrasadas para o colégio.
O tempo parece que transcorria mais devagar, os dias eram
compridos, espichados, as férias grandes, difíceis de preencher, a ponto de
sentirmos saudades da escola e torcermos para que o ano letivo começasse logo.
As noites estreladas e a gurizada correndo e brincando no
meio das ruas onde, de quando em vez, passava lentamente um carro buzinando.
As famílias conversavam, iam à Missa, visitavam amigos,
conviviam mais. O mundo era menorzinho e as coisas e pessoas tão distantes não
preocupavam muito, afinal, por que se aborrecer com coisas que não nos dizem
respeito, nem dependem de nós?
As músicas eram quase sempre românticas e em quase todas as
famílias alguém cantava ou tocava um instrumento.
As tias solteironas costuravam e bordavam na casa dos
parentes, orgulhosas dos sobrinhos. A maquilagem era pouca, mas os vestidos
tinham rendas, babados, fitas, bordados, plissados, casinhas de abelha, tudo combinando.
Como disse Casimiro de Abreu, poeta romântico do século XIX,
“Oh, dias da minha infância / Oh, meu céu
de primavera,/ que doce a vida não era / nessas risonhas manhãs...”
Parece que descrevo cenas muito antigas, de uma época muito
remota, todavia, recém completei 60 anos. Os tempos é que estão mudando muito
depressa, evoluindo a tecnologia e complicando as relações humanas.
Imagino uma roda de gaudérios em volta do fogo, passando a
cuia de mão em mão, ouvindo as notícias das guerras, das revoltas e da
corrupção no radinho de pilha e dizendo cismados:
“– É, a coisa tá
feia lá pra cima...”
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