sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O POÇO



Dona Dosolina era muito conhecida nesta rua, afinal vivera noventa anos por aqui, criando uma penca de filhos e depois netos. Sua casa ficava ao lado do prédio onde moro e ela deve ter sofrido um bocado durante a construção do “Recanto das Pedras”. Fui das primeiras moradoras e meu apartamento ficava exatamente ao lado do quarto dela (ouvia até seus roncos à noite). Presa a costumes antigos, de quando Floripa ainda era uma ilhazinha e o Estreito um bairro com ares de cidade do interior, dona Dosolina criava galinhas (muitas!), tinha fogão e forno a lenha (oh fumacê!) e de madrugada já andava na horta, apanhando verduras antes do sol, cuidando das roseiras, alimentando a criação. Perdi a conta das vezes em que tivemos que ficar encerrados, com as janelas trancadas por causa do cheiro do galinheiro, dependendo da direção do vento. Quando fazia pão então era um Deus nos acuda! A casa se inundava de fumaça, fuligem e um pouquinho do cheiro do pão. Não era fácil! Mesmo assim eu gostava muito dela.
Italiana alta, forte, sempre mastigando alho para não pegar gripe, usando “chinelas” de couro largas, saias compridas, cabelo preso num coque, caminhando rápido, ia à missa todos os dias de manhã cedinho, fazia hidroginástica e ainda suas próprias compras, sempre sozinha na rua. E me fazia pensar que valeria a pena ficar velha como ela, se bastando e ainda recebendo a família com seus pães e suas galinhas.
Um dia, a ganância dos filhos fez com que ela vendesse a casa e fosse morar com um deles para repartirem o dinheiro. Dona Dosolina murchou... até gripada andava e sacudia a cabeça pensando nas roseiras que deixaria para trás.
Não sei como ela está, nunca mais a vi.
O que tenho acompanhado é a demolição de sua casinha, a destruição de sua horta bem cuidada, conformando-me com o fato de que os passarinhos fizeram de sua casa um parque de diversões e nos brindavam com serenatas maviosas diariamente.
Agora “eles” chegaram. Com suas máquinas assustadoras, seus homens gritões, seu materialismo irrefreável, indiferentes a tudo que não represente lucro ou dinheiro. Há dias promovem uma verdadeira devastação no que restara do solar da dona Dosolina, espantando pássaros e gentes, com um barulho ensurdecedor.
Hoje, feriado do Dia do Trabalho, antes das 7h a retro escavadeira já estava esburacando mais e mais. E o sono de quem pensava em poder dormir mais um pouco se evaporou junto com a paciência e qualquer resquício de civilidade.
No meio da função, descobriram um poço. Fundo e bem feito, no qual foi preciso colocar muitos metros cúbicos de terra para tentar nivelá-lo. Não pude deixar de pensar em como seria bom se o poço engolisse a todos, com suas máquinas barulhentas. É, estou com raiva mesmo.
Agora entendi porque, naqueles verões de falta d’água, dona Dosolina nunca se queixou e até, generosamente, nos cedia um baldinho para o banho das crianças. Ela tinha um poço! Foi o último a ser destruído, agora sim a casa da vizinha só resta mesmo nas nossas lembranças.


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