quinta-feira, 10 de março de 2016

VIRANDO A MESA



                        Sempre fora obediente. Os Dez Mandamentos de Moisés eram “fichinha” diante dos mandamentos do seu severo pai. Seria mais fácil enumerar as permissões do que as proibições em sua casa. E ela raramente transgredia, quase não se rebelava e cumpria os intermináveis castigos como parte do seu destino.
                       Dissera-lhe, certa vez, um amigo que todas as pessoas têm dois mundos: um exterior e outro interior e que ao mundo interior ninguém tem acesso além da gente mesmo. Era nisso que acreditava e, assim, ocupava-se em enfeitar e povoar seu mundinho privativo, algumas vezes deixando-o transparecer nas páginas dos diários, guardados a sete chaves, mas sem que nada dali fosse compartilhado.
                         Seu aspecto exterior não era de uma mocinha tímida e recatada, com saias compridas e óculos grandes, mas o de uma moça de tipo indefinido, olhar perscrutador e indecifrável, corpo bonito, feições agradáveis. Difícil emitir uma opinião segura sobre ela, escorregadia e fugaz como a sombra. Ela parecia o que não era e não era o que parecia.
                           Não demorou para que lhe arranjassem pretendente, sem graça como todos daquela família, sem sal nem açúcar, insosso. Nem precisaram enumerar todas as qualidades do feioso, porque viram que ela, mais uma vez, iria obedecer e pronto.
                         Sorrisos mornos, vestidos comportados, festas com hora de acabar, troca de alianças, compras de enxoval, nas quais ela fingia participar, sem entusiasmo algum, como se aqueles panos todos nunca fossem lhe pertencer.
                        Os estudos foram interrompidos, adiados para nunca mais, porque o importante era preparar as bodas e fazer as incontáveis provas do vestido branco, escolhido mais pela mãe do que por ela, que preferia pousar os olhos nos modelos masculinos, musculosos, de olhar penetrante, com lindos cabelos das revistas de vestidos de noiva.
                       Não tinha amigas, porque amizade exige privacidade, confidências, parceria, segredos e isso, na sua família, era impensável.
                       Como quem assiste a um filme foi participando da correria de todos, que pareciam procurar defeitos a fim de se incomodar com eles. Não se achou bonita nem feia no vestido, a impressão que tinha era sempre a mesma - de que ele se destinava a outra pessoa.
                       Não prestou atenção aos presentes que começaram a chegar e que causavam tanta euforia nos familiares e funcionários da casa a ponto deles nem repararem em sua indiferença.
                        Parentes distantes, muitos dos quais só ouvira falar (mal) uma vez ou outra, anunciavam sua chegada. E assim, neste alvoroço, teve ainda mais tempo de rechear seu Diário e seu mundinho interior.
                        Na véspera do casamento veio um rapaz passar o som, pois trabalharia como DJ na recepção. Ninguém tinha tempo para lhe dar atenção e, por milagre, incumbiram-na de facilitar as coisas para o moço, já que todo mundo parecia ocupado demais. E foi assim que ela conseguiu, finalmente, trocar meia dúzia de frases com alguém sem o olhar desconfiado de um parente.
                      - Você é a noiva?
                      - Sim.
                      - Tá animada com a festa?
                      - Tô.
                      - E com o casamento?
                     - Também.
                     - Não parece.
                     - Por quê?
                     - Sei lá, as noivas são sempre tão agitadas, tão ansiosas, querendo saber de tudo que vai acontecer.
                     - Eu não sou assim.
                     - Tô vendo. E como você é?
                     - Não sei.
                     - Chi. Conversinha difícil hein?
                     - É.
                     - Hoje vou tocar numa festança, daquelas de amanhecer o dia.
                     - Me leva?
                     - Quê? Tá louca?
                     - Quem sabe?
                     - Passo aqui à meia-noite, se estiver no portão...
                     - Vou estar!
                     Meia noite. A abóbora se transformou num carro e Cinderela embarcou nele, com os sapatinhos de cristal na mão pra não acordar ninguém.
                     Pela primeira vez em toda a sua vida viu seus olhos brilhando no espelhinho interno do carro e se preocupou em ajeitar a blusa e os cabelos.
                     Nem Alice no país da maravilhas deve ter se maravilhado tanto quanto ela naquela festa ao ar livre, cheia de claros e escuros, fumaça, som alto, pessoas rindo, bebendo, se beijando, dançando. Era uma vida que ela nem sabia que existia e a sensação da liberdade lhe pareceu a melhor de todas que já experimentara.
                    Provou comidas e bebidas com uma fome e uma sede seculares, ouviu elogios, obscenidades, dançou de rosto e corpo colado, sentiu cheiros e perfumes que sempre imaginara que os homens tivessem quando os via nas revistas. Toda a emoção que lhe fora proibida agora aflorava e ela era só sentidos. Nem uma só vez lembrou-se da vida que deixara atrás daquele portão pintado de branco e enfeitado de orquídeas.
                     No final da festa, seguiu abraçada com o homem que acabara de conhecer e assim entrou com ele no apartamento minúsculo, com pouquíssimos móveis, um colchão no chão, muitos discos em volta e uma cantora norte-americana espalhando sua voz cristalina pelo ambiente.
                      Com naturalidade, como se tivesse agido assim a vida toda, despiu-se e se deitou ao lado dele, certa de que mais emoções intensas iriam acontecer. E aconteceram. Devia ser a isso que chamavam felicidade!
                       Ainda sem roupa, com os odores naturais da vida invadindo a pequeno quarto, ficaram bebericando uma cuba libre em copos de requeijão.
                       O sol estava no meio do céu quando, finalmente, pegaram no sono, exaustos de emoção e prazer, sentindo aquela adrenalina própria do inusitado, do proibido e, por isso mesmo, potencializada.
                       Só se deram conta do tempo quando o estômago começou a reclamar. Nunca uma pizza lhe parecera tão saborosa!
                       Mais uma noite fantástica e a ficha caiu.
                       O dia do seu casamento passara e certamente a polícia devia andar atrás dela, ou seus pais tinham morrido de vergonha e de fato.
                       De madrugada voltou à casa.
                      Tudo calmo, não havia nada que indicasse que um terremoto passara por ali, a não ser alguns móveis ainda fora do lugar e caixas de presentes amontoadas num canto da sala. Pé por pé dirigiu-se ao seu quarto. Ao passar pelo quarto dos pais ouviu ainda o ressonar potente do pai. Pegou seu diário, um pouco do dinheiro guardado, algumas roupas, outro par de tênis  e escreveu um bilhete, que colocou na mesa da sala, com a aliança de ouro em cima.
Dizia assim:
                      - Vocês estão convidados para a festa do meu aniversário de 1 ano, nesta mesma data, no ano que vem.
                     Nasci hoje.
                    Depois mando o endereço.
                    Um beijo.








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