Sempre fora obediente. Os Dez Mandamentos de Moisés eram
“fichinha” diante dos mandamentos do seu severo pai. Seria mais fácil enumerar
as permissões do que as proibições em sua casa. E ela raramente transgredia,
quase não se rebelava e cumpria os intermináveis castigos como parte do seu
destino.
Dissera-lhe, certa vez, um amigo que todas as pessoas têm
dois mundos: um exterior e outro interior e que ao mundo interior ninguém tem
acesso além da gente mesmo. Era nisso que acreditava e, assim, ocupava-se em
enfeitar e povoar seu mundinho privativo, algumas vezes deixando-o transparecer
nas páginas dos diários, guardados a sete chaves, mas sem que nada dali fosse
compartilhado.
Seu aspecto exterior não era de uma mocinha tímida e
recatada, com saias compridas e óculos grandes, mas o de uma moça de tipo
indefinido, olhar perscrutador e indecifrável, corpo bonito, feições
agradáveis. Difícil emitir uma opinião segura sobre ela, escorregadia e fugaz
como a sombra. Ela parecia o que não era e não era o que parecia.
Não demorou para que lhe arranjassem pretendente, sem graça
como todos daquela família, sem sal nem açúcar, insosso. Nem precisaram
enumerar todas as qualidades do feioso, porque viram que ela, mais uma vez,
iria obedecer e pronto.
Sorrisos mornos, vestidos comportados, festas com hora de
acabar, troca de alianças, compras de enxoval, nas quais ela fingia participar,
sem entusiasmo algum, como se aqueles panos todos nunca fossem lhe pertencer.
Os estudos foram interrompidos, adiados para nunca mais,
porque o importante era preparar as bodas e fazer as incontáveis provas do
vestido branco, escolhido mais pela mãe do que por ela, que preferia pousar os
olhos nos modelos masculinos, musculosos, de olhar penetrante, com lindos
cabelos das revistas de vestidos de noiva.
Não tinha amigas, porque amizade exige privacidade,
confidências, parceria, segredos e isso, na sua família, era impensável.
Como quem assiste a um filme foi participando da correria de
todos, que pareciam procurar defeitos a fim de se incomodar com eles. Não se
achou bonita nem feia no vestido, a impressão que tinha era sempre a mesma - de
que ele se destinava a outra pessoa.
Não prestou atenção aos presentes que começaram a chegar e
que causavam tanta euforia nos familiares e funcionários da casa a ponto deles
nem repararem em sua indiferença.
Parentes distantes, muitos dos quais só ouvira falar (mal)
uma vez ou outra, anunciavam sua chegada. E assim, neste alvoroço, teve ainda
mais tempo de rechear seu Diário e seu mundinho interior.
Na véspera do casamento veio um rapaz passar o som, pois
trabalharia como DJ na recepção. Ninguém tinha tempo para lhe dar atenção e,
por milagre, incumbiram-na de facilitar as coisas para o moço, já que todo
mundo parecia ocupado demais. E foi assim que ela conseguiu, finalmente, trocar
meia dúzia de frases com alguém sem o olhar desconfiado de um parente.
- Você é a noiva?
- Sim.
- Tá animada com a festa?
- Tô.
- E com o casamento?
- Também.
- Não parece.
- Por quê?
- Sei lá, as noivas são sempre tão agitadas, tão ansiosas,
querendo saber de tudo que vai acontecer.
- Eu não sou assim.
- Tô vendo. E como você é?
- Não sei.
- Chi. Conversinha difícil hein?
- É.
- Hoje vou tocar numa festança, daquelas de amanhecer o dia.
- Me leva?
- Quê? Tá louca?
- Quem sabe?
- Passo aqui à meia-noite, se estiver no portão...
- Vou estar!
Meia noite. A abóbora se transformou num carro e Cinderela
embarcou nele, com os sapatinhos de cristal na mão pra não acordar ninguém.
Pela primeira vez em toda a sua vida viu seus olhos
brilhando no espelhinho interno do carro e se preocupou em ajeitar a blusa e os
cabelos.
Nem Alice no país da maravilhas deve ter se maravilhado
tanto quanto ela naquela festa ao ar livre, cheia de claros e escuros, fumaça,
som alto, pessoas rindo, bebendo, se beijando, dançando. Era uma vida que ela
nem sabia que existia e a sensação da liberdade lhe pareceu a melhor de todas
que já experimentara.
Provou comidas e bebidas com uma fome e uma sede seculares,
ouviu elogios, obscenidades, dançou de rosto e corpo colado, sentiu cheiros e
perfumes que sempre imaginara que os homens tivessem quando os via nas
revistas. Toda a emoção que lhe fora proibida agora aflorava e ela era só
sentidos. Nem uma só vez lembrou-se da vida que deixara atrás daquele portão
pintado de branco e enfeitado de orquídeas.
No final da festa, seguiu abraçada com o homem que acabara
de conhecer e assim entrou com ele no apartamento minúsculo, com pouquíssimos
móveis, um colchão no chão, muitos discos em volta e uma cantora
norte-americana espalhando sua voz cristalina pelo ambiente.
Com naturalidade, como se tivesse agido assim a vida toda,
despiu-se e se deitou ao lado dele, certa de que mais emoções intensas iriam
acontecer. E aconteceram. Devia ser a isso que chamavam felicidade!
Ainda sem roupa, com os odores naturais da vida invadindo a
pequeno quarto, ficaram bebericando uma cuba libre em copos de requeijão.
O sol estava no meio do céu quando, finalmente, pegaram no
sono, exaustos de emoção e prazer, sentindo aquela adrenalina própria do
inusitado, do proibido e, por isso mesmo, potencializada.
Só se deram conta do tempo quando o estômago começou a
reclamar. Nunca uma pizza lhe parecera tão saborosa!
Mais uma noite fantástica e a ficha caiu.
O dia do seu casamento passara e certamente a polícia devia
andar atrás dela, ou seus pais tinham morrido de vergonha e de fato.
De madrugada voltou à casa.
Tudo calmo, não havia nada que indicasse que um terremoto
passara por ali, a não ser alguns móveis ainda fora do lugar e caixas de
presentes amontoadas num canto da sala. Pé por pé dirigiu-se ao seu quarto. Ao
passar pelo quarto dos pais ouviu ainda o ressonar potente do pai. Pegou seu
diário, um pouco do dinheiro guardado, algumas roupas, outro par de tênis e escreveu um bilhete, que colocou na mesa da
sala, com a aliança de ouro em cima.
Dizia assim:
- Vocês estão
convidados para a festa do meu aniversário de 1 ano, nesta mesma data, no ano
que vem.
Nasci hoje.
Depois mando o
endereço.
Um beijo.
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