Ela sempre se considerou uma criatura mais visual e auditiva
do que propriamente olfativa. Gostava de admirar as coisas e as pessoas e se
deleitava com a música por horas a fio, além de viajar nas letras para mundos
distantes, onde os gritos de sua mãe chamando não a podiam alcançar.
Os apelos para os olhos e os ouvidos eram tantos que só
muito tempo depois descobriu que a memória tinha cheiro e que determinados
odores desencadeavam nela uma gama inimaginável de sensações e de lembranças.
O roupão do seu pai, dependurado no banheiro, rescendia a
erva-mate, cigarro de palha e loção de barbear, porque ele raramente usava
perfume e nunca usara desodorante, limitando-se a lavar bem as axilas com
sabão, como quem lava as mãos. E ali, naquele pedaço de pano, estava a
lembrança viva e dolorida da sua fortaleza maior.
Da avó guardava dois cheiros bem distintos: o dos perfumes
franceses, marcantes, que ela fazia questão de usar, inclusive pingando na
roupa, e dos pães, pudins e doces em calda que ela estava sempre assando e
criando na cozinha.
A mãe era totalmente doce, floral, cor-de-rosa, com um
cheiro adocicado de flores que a envolvia completamente.
As primeiras carícias amorosas tinham cheiro de brim e de
cavalos, daquele namorado que usava fardas da cavalaria e que lhe deixava o
coração sapateando no peito.
O cheiro do mar sempre lhe parecera muito forte, ácido,
cortante e inesquecível.
A pele dos bebês, o cheiro em cada dobrinha, no pescoço, nas
mãozinhas fortemente fechadas, nos pezinhos úmidos dentro das meias de lã;
esse, para ela, era um cheiro inextinguível, visceral, que acompanhou sua
existência para sempre.
Ela sempre gostara mais do cheiro do que do gosto do café e,
além disso, o perfume do chimarrão gaúcho lhe parecia bem mais apetitoso.
Para ela própria, preferia sempre os perfumes cítricos,
amadeirados e que não colassem na pele mais do que o tempo esperado. Não
suportava acordar de manhã com o pescoço, os pulsos e os cabelos rescendendo a
perfume dormido, da festa do dia anterior. Não sabia como seria lembrada por
seus descendentes, que cheiro lhe seria atribuído, já que a memória olfativa é
inerente a cada pessoa.
No dia em que seus olhos deixaram de perceber os detalhes
das coisas e as letras precisavam ser imensas, difíceis de serem reunidas em
palavras e parágrafos, passados os primeiros tempos suicidas, transposto o muro
das lamentações, poucos caminhos restaram para cumprir o final da jornada.
Poderia dedilhar nos
teclados as tantas melodias que seus dedos conheciam bem e viver da comiseração
mal disfarçada da família e dos amigos, além do escárnio dos desafetos.
Não. Não era suficiente, nem suportável para ela.
Pensou, então, na força do seu próprio nariz e no que ele
lhe invocava. Não seria um peso para ninguém, nem para ela própria.
Apaixonada por vinhos desde que se conhecia por gente,
juntou o útil ao necessário e partiu ao encontro de mais um trabalho na vida,
diferente dos demais, mas ao qual se dedicaria tanto quanto; de escritora e
pianista passara, agora, a degustadora de vinhos, uma
exigente sommelier.
Lentamente, ela fecha os olhos, como se esperasse um beijo
de amor. Balança levemente o cálice, ondulando o líquido em seu interior e
aproxima o nariz, acostumado a tantas lembranças, para sentir todos os aromas
ali presentes.
Foi assim, nesta nova função, que ela renasceu.
Um comentário:
Olá, vim aqui comer docinhos, pois seus contos e crônicas são como docinhos que degusto com prazer. E, apropriadamente como na história, com cheirinhos.
Interessante que, também, inspirou-me a descobrir talentos que me façam renascer. Quem sabe um hobby possa virar um profissão?
Obrigado pela leitura.
Tenha um ótimo dia!
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