sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

LEMBRANÇAS NA PONTA DO NARIZ




                      Ela sempre se considerou uma criatura mais visual e auditiva do que propriamente olfativa. Gostava de admirar as coisas e as pessoas e se deleitava com a música por horas a fio, além de viajar nas letras para mundos distantes, onde os gritos de sua mãe chamando não a podiam alcançar.
                     Os apelos para os olhos e os ouvidos eram tantos que só muito tempo depois descobriu que a memória tinha cheiro e que determinados odores desencadeavam nela uma gama inimaginável de sensações e de lembranças.
                      O roupão do seu pai, dependurado no banheiro, rescendia a erva-mate, cigarro de palha e loção de barbear, porque ele raramente usava perfume e nunca usara desodorante, limitando-se a lavar bem as axilas com sabão, como quem lava as mãos. E ali, naquele pedaço de pano, estava a lembrança viva e dolorida da sua fortaleza maior.
                     Da avó guardava dois cheiros bem distintos: o dos perfumes franceses, marcantes, que ela fazia questão de usar, inclusive pingando na roupa, e dos pães, pudins e doces em calda que ela estava sempre assando e criando na cozinha.
                       A mãe era totalmente doce, floral, cor-de-rosa, com um cheiro adocicado de flores que a envolvia completamente.
                      As primeiras carícias amorosas tinham cheiro de brim e de cavalos, daquele namorado que usava fardas da cavalaria e que lhe deixava o coração sapateando no peito.
                     O cheiro do mar sempre lhe parecera muito forte, ácido, cortante e inesquecível.
                     A pele dos bebês, o cheiro em cada dobrinha, no pescoço, nas mãozinhas fortemente fechadas, nos pezinhos úmidos dentro das meias de lã; esse, para ela, era um cheiro inextinguível, visceral, que acompanhou sua existência para sempre.
                      Ela sempre gostara mais do cheiro do que do gosto do café e, além disso, o perfume do chimarrão gaúcho lhe parecia bem mais apetitoso.
                     Para ela própria, preferia sempre os perfumes cítricos, amadeirados e que não colassem na pele mais do que o tempo esperado. Não suportava acordar de manhã com o pescoço, os pulsos e os cabelos rescendendo a perfume dormido, da festa do dia anterior. Não sabia como seria lembrada por seus descendentes, que cheiro lhe seria atribuído, já que a memória olfativa é inerente a cada pessoa.
                       No dia em que seus olhos deixaram de perceber os detalhes das coisas e as letras precisavam ser imensas, difíceis de serem reunidas em palavras e parágrafos, passados os primeiros tempos suicidas, transposto o muro das lamentações, poucos caminhos restaram para cumprir o final da jornada.
                      Poderia dedilhar nos teclados as tantas melodias que seus dedos conheciam bem e viver da comiseração mal disfarçada da família e dos amigos, além do escárnio dos desafetos.
                     Não. Não era suficiente, nem suportável para ela.
                     Pensou, então, na força do seu próprio nariz e no que ele lhe invocava. Não seria um peso para ninguém, nem para ela própria.
                     Apaixonada por vinhos desde que se conhecia por gente, juntou o útil ao necessário e partiu ao encontro de mais um trabalho na vida, diferente dos demais, mas ao qual se dedicaria tanto quanto; de escritora e pianista passara, agora, a degustadora de vinhos,  uma  exigente sommelier.
                     Lentamente, ela fecha os olhos, como se esperasse um beijo de amor. Balança levemente o cálice, ondulando o líquido em seu interior e aproxima o nariz, acostumado a tantas lembranças, para sentir todos os aromas ali presentes.
                     Foi assim, nesta nova função, que ela renasceu.





Um comentário:

Paulo disse...

Olá, vim aqui comer docinhos, pois seus contos e crônicas são como docinhos que degusto com prazer. E, apropriadamente como na história, com cheirinhos.
Interessante que, também, inspirou-me a descobrir talentos que me façam renascer. Quem sabe um hobby possa virar um profissão?
Obrigado pela leitura.
Tenha um ótimo dia!