Manhã do dia 25 de dezembro. Natal. Passeando
com meu pai na praça do bairro, recordações, emoções novas, diferentes
sensações vão se misturando a cada passo. Revejo-me criança, apressada para a
escola, furtando flores para a professora ou em ruidosas correrias com a turma
da rua, a pé, com patinetes ou bicicletas. Pensava em me tornar saudosista lá
pelas tantas da vida, entretanto, eis-me aqui, babando pieguices sob os ipês da
velha praça... A sombra generosa dos monumentos, o chafariz, o quiosque dos
namorados e as alamedas sombreadas que conduzem à Igreja e às ruas centrais vão
contando, passo a passo, minha história de vida naquela cidadezinha que já fora
o centro do universo para mim. Caminhando agora sem pressa, uma vez que meu herói
envelheceu como um mortal comum, vou sorvendo, com interesse, as lições de vida
que ele me passa.
Já tínhamos caminhado o suficiente para
suas pernas precisarem de um descanso, portanto, escolhemos um banco no centro
da praça, protegido do sol pelas copas das árvores e recomeçamos o assunto;
sempre casos antigos, de amigos que já tinham morrido, parentes que povoaram
sua infância, políticos honestos e idealistas, tudo coisas extintas,
infelizmente. Nesse momento, um rapaz, fruto da moderna e permissiva educação,
torceu bruscamente a torneira da alameda central, tentando refrescar o porre da
véspera e arrebentando com a frágil instalação. Logo um imenso chafariz
enfeitou o passeio e os parcos recursos públicos minguaram um pouco mais.
Meu pai e eu, incapazes de consertar o
estrago, ficamos conjeturando sobre as reações diversas dos transeuntes. A
maioria passava indiferente, tomando o cuidado único de não molhar os sapatos
na água que começava a empoçar na calçada. A primeira pessoa a tentar consertar
o estrago foi uma freirinha que saía da Missa das 10h, mas não conseguiu. O
jato forte atravessava suas mãozinhas delicadas, habituadas a desfiar as contas
do rosário e não a soldar canos. Depois de muitos indiferentes, surge um guarda
municipal que tenta estancar o vazamento dos cofres públicos, porém desiste
depressa demais. Uma menininha pára a bicicleta e experimenta deter a enxurrada
com sua mãozinha econômica - valeu a intenção apenas. Assim jorrava a torneira
de Natal, refrescando a raiva da falta de festa, de peru, de presentes na mesa
dos trabalhadores.
De repente, aparece uma figura, nossa
velha conhecida,
agasalhada mesmo no verão, com passos rápidos, uma touca cobrindo a carapinha
branca, acompanhada por sua cachorrinha chamada Nenê. Vem cumprimentando todos os passantes, sempre com um sorriso
aberto, sem se queixar de nada ou pedir qualquer coisa. Parou ao nosso lado e eu
não me sofri. Perguntei seu nome e idade.
- Maria do Espírito Santo. 96 anos.
Admirada, quis saber
a receita que ela tinha para permanecer lúcida e lépida com essa idade.
- Não tomar remédio de médico, diz ela. Porque tudo o que nos cura está na natureza,
nas plantas. E desfiou um sem número
de chás e mezinhas dos quais pouco
ouvira falar. Disse que tinha tudo o que precisava no seu quintal. Maranhense,
dona Maria esclareceu que foi nascida e
criada num sítio do município de São Luiz. Falou também que não achava
relevante o fato de um ex-presidente ter nascido lá, mas, em compensação, citou
estrofes inteiras da poesia de Gonçalves Dias, afirmando que a terra com palmeiras e sabiás é lá
mesmo. Tudo o que a preta velha diz faz muito sentido. Caprichosa, a roupa
impecavelmente limpa, pés e mãos grandes, alta e magra como uma africana de boa
estirpe, dona Maria vive sozinha com sua Nenê e não tem medo de nada...só de
remédios. Vendo o estrago feito à torneira da praça, balança a cabeça e defende
a cachorrinha que, segundo ela, procede
como um humano e nem todo humano procede que nem ela. Sempre apressada,
despede-se recitando: -“QUEM ESPERA EM DEUS NÃO CANSA,
QUEM ENCOSTA EM DEUS NÃO
CAI E, SE CAI, NÃO
SENTE A QUEDA.”
Um avô atencioso, passeando com os
netos, ao perceber o estrago feito à única torneira que aliviava a sede das
pessoas, volta em casa e traz a varinha mágica que realiza o milagre de conter
as águas da insatisfação - um alicate. Uma vigorosa torcida no cano e pronto.
Tudo voltou ao normal na velha praça. Até a calçada molhada o sol secou
rapidinho, para que não se pensasse em lágrimas numa data tão significativa.
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