segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

PROGRAMA DE ÍNDIO




- Sophie! Isso lá é nome de pobre, de preto? Tá sonhando mulher?
- Li numa revista e a moça era linda! Não quero minha filha com nome de pobre, como essas marias do morro. Minha filha vai ser famosa, rica e o nome vai ajudar. É Sophie e pronto!
- Depois não se queixa quando pronunciarem errado, ou botarem apelido pra ficar mais fácil. Sosô quem sabe?
- Chega! Vai logo registrar a menina e leva o papel pra não errar nenhuma letra: Sophie Alves dos Santos. É esse o nome dela.

O morro é bom pra fortalecer as pernas e deixar o bumbum durinho. Nem o ônibus consegue subir até aonde essas perninhas finas precisam chegar todo dia na volta da escola. Pra descer é fácil, chega num instantinho, mas pra subir... não é pra qualquer um! Com sacolas de compras, ou com a mochila da escola fica ainda mais penoso, no entanto, a pouca carne do corpo ajuda a diminuir o peso e a gente se acostuma com tudo na vida. Pior são os velhos, os doentes, as mães com filho no colo, esses sim pagam pecado todo santo dia. Além disso, tenho certeza de que não ficarei muito tempo por aqui. Ainda vou morar lá embaixo, na avenida, no meio dos bacanas, numa casa cheia de quartos e de cachorros, com piscina e tudo! Ah vou!
Minha mãe queria que eu fosse modelo, só porque estou sempre magrinha. Cresci cedo, achavam que eu ficaria muito alta, só que depois parei, fiquei assim na média e as modelos têm que ser bem altas. Não sou bonita nem feia, aprendi muitos truques nas revistas e programas de TV e sei valorizar o que tenho de melhor e esconder o que não gosto. O cabelo afro tá na moda, minha mãe deixou crescer bastante e nunca me meti nesses alisamentos que deixam a gente com cabeça de vassoura. Muito creme, muito óleo e ele fica encaracolado, bonitinho. Sei fazer as unhas, até com essas técnicas modernas, cheias de aplicações. Fiz curso pensando em ser manicure, depois achei que passar a vida encurvada sobre mãos e pés dos outros não era a minha praia. Como pouquinho e gosto mesmo é de besteiras, mas nem sempre a grana dá pra comprar. Frequento lojas modernas, de roupas baratas, vendidas em muitas prestações; com isso, tenho roupas bem transadas, que lavo com cuidado para durarem bastante.
Não gosto muito de estudar, prefiro ouvir música bem alta, dançando os ritmos da moda. Adoro novelas! Não acredito em príncipes encantados e nunca me apaixonei. Casar cedo como a minha mãe nem pensar! Me encher de filhos e de dívidas e ainda ter que aguentar as broncas de um homem cheio de cerveja, só falando em futebol, não é pra mim! Eu quero mais! E vou tomar da vida tudo o que eu tenho direito, ah vou!
Adoro arrumar gavetas, organizar coisas, descartar objetos sem uso. Deve ser uma necessidade mental de ajeitar minha cabeça, colocar ordem nos meus pensamentos. Numa dessas faxinas encontrei o anúncio, não sei como foi parar ali, devia ser mesmo pra mim:
“Agência seleciona garotas para acompanhantes de turistas. Tem que ter boa aparência, boa saúde e ser maior de idade.”
Não sou de se jogar fora, não tenho doenças, o problema são meus quinze anos, mas a carteira de identidade da minha prima, um pouco parecida comigo, deve servir. Troco com ela por uns tempos.
Nem me importei com a cara de safado do entrevistador, com as apalpadelas, tampouco com a indiscrição das perguntas. Me vinguei mentindo bastante e tenho certeza de que ele sabia que a moça da foto não era eu, mas fingiu acreditar, porque tem homem mais velho que adora menina bem nova, isso eu já sabia e ele também.
Voltei pra casa animada, dali a dois dias iria estrear no novo emprego. Claro que não falei pra ninguém, a não ser pra minha prima que ia ter que me ajudar em algumas mentiras.
Caprichei no visual, perfumei cada dobrinha de pele e esperei minha mãe sair pra descer o morro, pisando firme, como quem conquista um lugar ao sol, ou na avenida.
Fui levada de carro até o hotel, onde me apresentaram um gringo de barba branca e fala enrolada, com uns olhinhos miúdos que examinavam cada centímetro do meu corpo magro, quadril estreito, seios pequenos. Ele disse que eu nem parecia brasileira, deve ser pela falta de bunda. Mas gostou de mim assim mesmo, imagino que pelo inusitado de sair com uma negrinha tão jovem e perfumada em excesso.
Passeio na praia, uma sequência de frutos do mar como eu só vira nas propagandas dos restaurantes chiques, caipirinhas que eu só bebericava e ele entornava uma atrás da outra e muitas mentiras. Acho que meu nome foi a única verdade que eu falei.
Estava muito mais relaxada do que poderia supor, o que me fez acreditar que chegaria ainda mais cedo ao meu objetivo.
Nas mesas ao lado, famílias confraternizavam daquele jeito de sempre, casal discutindo, crianças gritando e um monte de batatas fritas gordurosas sobre a mesa, além de muitas latas de cerveja barata. Um pouco mais distante havia um casal de meia idade conversando baixinho, ele muito discreto e ela com aqueles olhos curiosos e atentos, rabiscando coisas num guardanapo, devia ser escritora.
Neste dia, uma parte da humanidade acompanha a eleição do novo Papa; outros brigam por conta de uma tal Cartilha sobre gays para as crianças (como se fosse preciso ensinar alguém a escolher seus parceiros) e ainda há os que se preocupam com aquela gente de olhos puxados, lá longe no mundo, ameaçando outros de olhos puxados também. E eu com isso? Me poupe!
O que eu quero da vida é um bom dinheiro, uma boa casa, um carro só meu e isso eu sei que vou conseguir.
Estou aqui não estou? De frente para o mar, comendo camarões, bebendo alguns goles da décima caipiroska que o velhote pediu e sei que, com mais algumas, fica fácil colocá-lo pra dormir sem me dar muito trabalho, com o meu dinheirinho no bolso. Vou até comprar um batom pra minha prima, daquela cor que ela comentou que achava lindo.
Sei que isso que faço se chama “programa”. E daí? Olho de novo para aquela mesa da família, escuto a balbúrdia – que deve se estender em casa – e concluo: eles também fazem programa... só que de índio!







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