Era uma vez uma menina que queria ser
bailarina, como no poema da Cecília Meirelles. Queria ser artista de circo
também, provavelmente contorcionista. Ah, e ter um cavalo, andar de gôndola,
conhecer o mundo, encontrar um príncipe encantado, desde que não fosse preciso
beijar o sapo antes.
Casa cheia de espelhos, logo descobriu
que aquela beleza toda que lhe atribuíam aparecia só nos olhos (certamente
cansados) da avó e na bondade da mãe. Outrossim, sua inquietude e curiosidade
constantes faziam com que tivesse pernas fortes, que as sapatilhas ajudavam a
tornear. Não era, portanto, um caso perdido; nem seria impossível conquistar o
coração de um príncipe de módico reino, desde que fosse bonito de doer, porque
disso ela não abria mão.
Assim como no conto do
Patinho Feio, eis que, num repente,
nossa patinha quase feia se descobre de fina estampa, cheia de assovios pelas
ruas, rebolando o que a mãe África lhe enviara através de algum escravo safado,
lá no tempo das suas bisavós.
E barbarizou, é claro! Fez striptease, topless, tudo quanto era proibido e desaconselhável para moçoilas
casadoiras. Nas boates se exibia diante dos espelhos de dar inveja às
profissionais da coisa. Nas praias fazia caras e bocas, empinando o bumbum e
enlouquecendo seu eventual acompanhante, que já se dispunha a andar armado por
conta da namorada. Nos motéis chegava a esquecer do parceiro de tanto se
admirar no espelho do teto. Tava bonita a frangota!
Como diria o bom Nelson (Rodrigues, é
claro), era a legítima “namorada lésbica de si mesma”.
Ninguém sobrevive de se olhar no
espelho, portanto, ela foi à luta e se transformou numa mulher dinâmica,
vaidosa, antenada, que forçava os olhos para ler sem óculos a fim de desfrutar
da liberdade dos olhos nus.
Deu conta de tudo o que a vida lhe
ofereceu e lhe cobrou direitinho, numa eficiência até para ela própria
desconhecida. Chegou a ter três empregos ao mesmo tempo, sem deixar de dançar e
de se olhar no espelho.
Um dia, sem aviso prévio, chegou a
aposentadoria e a menopausa. Pacote duplo, completo, com tudo o que cada um
deles significa e traz embutido. E o tempo sobrou. Tempo para pensar e fazer
balanços difíceis, com direito a alguns arrependimentos, porque só os inconsequentes
erram e dizem que fariam tudo igual. E isso ela não era.
Trocou os espelhos pelos livros, que sempre
estiveram quase empatados, promovendo uma verdadeira fuga através da leitura,
agora com o auxílio de óculos bem graduados.
Num desses momentos, o livro que lia
“criou barriga”, ficou chato e ela, ainda de óculos, inicia um autoexame ali
mesmo, estendida no sofá da sala de estar. Primeiro dos pés (como enfearam!),
depois das pernas (de onde surgiram esses vasinhos azuis?), das mãos, que
sempre foram lindas, elogiadas e agora com a pele sem viço, encrespada e com
manchas de sol.
Num ímpeto, levanta do sofá e corre
para se ver no espelho do banheiro, desesperando-se com a pele esquisita, de
poros dilatados, tão diferente daquela que normalmente o espelho lhe devolve, maquiada e sem óculos.
Conclui, com uma ponta grande de
tristeza, que a natureza é sábia e que nos diminui a visão na medida em que
aumenta a decrepitude do corpo.
- Hora de cuidar do interior! diz para
si mesma. Revigorar os valores, abandonar os vícios, aumentar a religiosidade,
fazer trabalhos voluntários, crescer como pessoa.
De repente, eis que surge um sorriso
brejeiro no espelho, que a ilumina e acende o brilho no olhar. Ainda bem!
Corre ao telefone:
- Cássio? É, sou eu. Não morri não e
estou louca pra te ver! No mesmo lugar?
Ele também envelhecera. E muito. Mas,
quando sorria, mostrava aquele outro, antigo, escondido dentro dele.
- Tira os óculos! Aqui não vamos
precisar deles. Deixa que nossos sentidos aflorem, sem serem ofuscados por uma
visão artificial.
E ela voltou a dançar, rindo alto, abraçada
a seu príncipe encantado.
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