quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

MIOLO MOLE, ou Um homem pra chamar de seu.




                         Sempre fora feia, magricela e espevitada. Namorados só se aproximavam para tirar alguma coisa dela, sem contato físico algum, apenas usufruindo do pouquinho a mais que ela tinha. E a bobona ficava suspirando, apaixonada, oferecendo música nas rádios, atormentando os pobres diabos ao telefone, inventando lorotas para aquelas visitinhas esporádicas que eles lhe faziam, sempre com o intuito de tomar sua cerveja e fumar seu cigarro. Uns pobres diabos, geralmente casados e com filhos, que ela sonhava em conquistar e “tomar” da mulher. Mas nunca conseguiu.
                         Morava com a mãe velha, de voz rouca, fumante inveterada e a maior fofoqueira do prédio. Sentada diante da sacada do apartamento, num bairro de classe média, afastava minimamente a cortina e passava o dia espiando o entra e sai de cada morador e tecendo comentários mordazes. Como estavam sempre em casa, às vezes o carteiro entregava a correspondência do prédio para elas, com a promessa de que iriam distribuí-las nas caixinhas de coleta dos apartamentos. Muitas vezes, no entanto, mãe e filha surrupiavam e liam as cartas que julgavam mais interessantes, os extratos bancários, as cobranças e era um sumiço só de documentos importantes.
                      Quase não tinham amigos, nem parentes que as visitassem, viviam reclusas e raramente saíam à rua. A filha fazia as compras da casa e os serviços de banco, a mãe cozinhava e cuidava da vida alheia. E assim viveram por muitos anos. Tinham dois imóveis alugados, uma pequena pensão que o pai deixara e a vida transcorria sem muitas surpresas.
                      A jovem, alta, magra e feia demais usava óculos fora de moda e dentadura, pois nunca cuidara dos dentes, nem se alimentara direito. A casa tinha o ranço da velhice e da pouca higiene; no entanto, como sempre há um outro lado, a moça crochetava muito bem, com um capricho meticuloso nos pontos, ainda que o produto final precisasse ser lavado em muitas águas a fim de extrair dele o cheiro ocre da nicotina e do roçar nos móveis empoeirados. Com seu crochê ajudava no orçamento e ocupava sua cabeça pouco centrada.
                       O tempo foi passando, a esperança de usar o enxoval preparado com esmero foi minguando e a moça foi assumindo seu status de solteirona. Sempre pensando em homens, sempre esperando Fulano ou Beltrano que ficaram de aparecer, sempre sob a rédea da mãe, que vivia aos gritos por ela cada vez que percebia uma conversa da moça com alguém nos corredores.
                      O cigarro, a pressão e os maus tratos da filha adoeceram e mataram a velha, que passou os últimos meses gemendo de dar dó, chamando a moça aos berros e recebendo em troca gritos e até safanões.
                      Livre! Finalmente dona de si! Podendo chamar os homens que quisesse, beber quanto quisesse, nunca mais limpar a casa e viver de batata frita com maionese, sua maior paixão culinária! Foi com alívio que enterrou a mãe e nem conseguiu fingir alguma lágrima no velório, alegando que era para que o espírito da mulher descansasse.
                     O apartamento virou de pernas para o ar, alugou quartos para desconhecidos, pagou para homens virem vê-la, se entupiu de bebida, fumou mais do que nunca e quase matou o cachorro de fome.
                    A pensão do pai foi extinta, um dos imóveis já tinha sido vendido e ela passou a viver com um aluguel. Felizmente os dois imóveis eram quitados, mas a quantia recebida se tornou insuficiente para bancar tantos vícios e tantos aproveitadores. E ela resolveu trabalhar, coisa que ainda não tinha experimentado. Meteu-se em tantas confusões, intrigou tantos colegas que logo foi mandada embora. Como ônus, trouxe para casa um colega igualmente dispensado do serviço por má índole e maus antecedentes. O homem veio de mala e cuia, apossou-se logo do melhor quarto, submeteu o cachorro às suas ordens e escravizou a doidivanas, fazendo com que ela lhe proporcionasse tudo o que ele nunca tivera, inclusive morar num lugar decente e sem precisar trabalhar.
                    A vizinhança, escandalizada, tentou aconselhar a moça inúmeras vezes, mas ela batia no peito e dizia em alto e bom som que agora estava casada, que tinha um homem só dela e, mesmo na menopausa, achava todos os meses que seria mãe de um filho dele.
                   Não demorou nada para os vizinhos serem acordados com gritos, xingamentos e pancadas com que ele a brindava muito seguidamente. Cheia de hematomas, mais magra do que já era, ela continuava a elogiar “seu homem” e ai de quem ousasse desconfiar dele.
                   Menos de um ano depois, o apartamento onde moravam foi vendido para pagar contas e eles se mudaram para o menor. Agora não tinham nem mais aluguel. Na venda, ela deu um carro para ele, sob o pretexto de que ele precisava para seu novo trabalho, que nunca ninguém soube o que era. Os vizinhos só sabiam que o dito cujo roncava e fumava maconha o dia inteiro, entupindo a pamonha de cachaça para que ficasse mais irresponsável e desligada do que já era.
                  E foi assim até o dia em que ele pesou mais a mão, suas costelas esquálidas se romperam e ela ficou estendida no chão, com o pouco sangue escorrendo pelo canto da boca, o cão feioso lambendo assustado a ferida, seu príncipe encantado enchendo uma sacola com as poucas coisas de valor que restavam, pegando as chaves do carro que já estava em seu nome e ainda fazendo um último gesto obsceno para aquela triste figura de olhos vidrados, odor repulsivo e miolo mole.
                  Final esperado diante da torpeza da vida e das pessoas.
                  Preso, o homem age rápido. Arranca a arma da cintura do policial e aponta para a própria cabeça:
                  - A cadeia é pouco para mim! E estoura seus miolos.





2 comentários:

Paulo disse...

Olá!
Navego na internet à procura de bons textos e acabei chegando ao seu. Elogiável seu estilo.
Interesso-me por este tipo crônica. Já fui policial e houve época que no meu dia a dia me deparava, diariamente, com coisas assim, vivenciando as tragédias da loucura humana. Depois, passei para atividades jurídicas, mas as lições – ou marcas – daquela época nunca serão esquecidas.
Uma curiosidade: o que a inspira a escrever seus contos? Observações? Experiências? Ou, como dizia aquela personagem do Guimarães Rosa: não digo porque vi, digo porque ouvi dizer ...

Maria Luiza Vargas Ramos disse...

Que bom ter um leitor observador! Estes contos estão no meu livro "Decifra-me", junto a muitos outros. Olha, alguns contos são baseados em personagens que conheci, outros em histórias que ouvi e mais outros frutos da minha imaginação. Vou postar mais um "policial" em sua homenagem, ok? Volte sempre!