Gente cristã não se vinga. Oferece a outra face para o tapa.
Perdoa sempre o agressor. Esquece a ofensa. Ou finge que esqueceu.
O corpo humano é burro, seus fluidos não reconhecem, nem
diferenciam o bom do ruim, apenas distinguem uma forte emoção que faz o coração
disparar, o sangue gelar nas veias, as faces ruborizarem e os olhos brilharem
arregalados. Tanto para o tapa quanto para o beijo, para a boa notícia e para a
catastrófica. Em ambos os casos ficamos catatônicos, incapazes de uma reação
tranquila, plausível. Por isso, quando queremos nos vingar de um mal sofrido,
devemos esperar passar esse momento de confusão, baixar a poeira, refletir com
calma e, lentamente, arquitetar o troco, ou a vingança.
Foi exatamente isso que Rosaura fez.
Sempre fora uma estudante dedicada, uma moça responsável que
colocava o dever e os compromissos bem antes de qualquer forma de lazer. O
pouco que conseguira na vida sempre lhe custara muito esforço e ela agarrava
com unhas e dentes todas as oportunidades de crescimento pessoal e
profissional. Não chegara a passar privações, todavia, sempre soubera que tudo
o que quisesse da vida não receberia de herança, ou de mão beijada, teria que
batalhar muito para conseguir. Por isso, seus planos pessoais foram sendo
adiados, pelo menos até que ela chegasse aonde pretendia e tivesse a segurança
necessária para pensar em outras coisas na vida.
Marilda se formara com ela, no entanto tinhas outras
prioridades. Conquistar este ou aquele, comprar isto ou aquilo, viajar, dançar,
aproveitar a juventude. Trabalhava na firma do pai, em meio expediente e sem
grandes perspectivas. Achava que um marido rico lhe traria tudo o que quisesse
bem mais rápido do que enfrentando cursos de aperfeiçoamento, matéria para
estudar, finais de semana perdidos.
Uma grande empresa multinacional instalou-se na cidade onde
elas viviam e quase todo mundo se candidatou às vagas oferecidas e aos altos
salários. Rosaura perdeu noites de sono repassando os conhecimentos da área
para a qual se inscrevera e Marilda se concentrou em como pretendia se
apresentar na entrevista, realçando sua limitada beleza até onde pudesse. A
primeira saiu da sala do entrevistador muito satisfeita, pois respondera a tudo
com presteza, demonstrando um real conhecimento da função. Já a outra terminou
a entrevista com um convite para jantar e para apresentar o forasteiro aos
lugares mais divertidos da cidade.
No dia do resultado, para surpresa de todos que as
conheciam, Rosaura ficou em segundo lugar e Marilda em primeiro, ganhando a
vaga sem ao menos ter noção do que iria fazer ali. Diante do espanto e
frustração da ex-colega, tripudiou: - Se
você se arrumasse melhor teria mais resultado do que andando por aí com tanto
livrinho debaixo do braço.
Pela primeira vez Rosaura sentiu o peito inchar com um
sentimento novo, ácido, amargo, que a sufocava. Não descansaria enquanto não
desse o troco àquela espevitada.
Continuou na sua labuta diária, no entanto, alguma coisa
dentro dela se partira e ela começou a ver o mundo e as pessoas de outra forma.
Perdera definitivamente a inocência e a falsa ideia de que o esforço sempre
compensa e que seu futuro estaria definido pelas horas de estudo que tivesse.
Soube que Marilda ia se casar com o chefe que a entrevistara
e não achou justo que tudo de melhor fosse destinado a uma pessoa sem
escrúpulos e sem capacidade, cujo único trunfo era o de saber se arrumar e
chamar a atenção dos homens.
E resolveu se vingar.
Uma outra pessoa surgiu de
dentro dela e se pôs a arquitetar um plano demoníaco, só para ver a
outra baixar a crista uma vez que fosse.
Na véspera do casamento, deu um jeito de convocar Marilda
para uma reunião no escritório, fazendo-se passar pela secretária do Chefe, que
ela conhecia bem.
Comprou um vestido colado ao corpo, com generoso decote e
costas de fora, colocou um sapato de salto bem alto, prendeu o cabelo, ousou na
maquilagem e nos brincos, exagerou no perfume francês (daqueles que grudam na
pele por dias) e vestiu uma capa de gabardine por cima, a fim de não chamar muito
a atenção dos funcionários. No estacionamento percebeu quando o carro de
Marilda chegava e pôs o plano em ação.
Pediu que chamassem a secretária do Chefe na Portaria porque
precisava entregar-lhe uma encomenda e, assim que a funcionária se dirigiu ao
interfone, esgueirou-se rapidamente, caminhando com firmeza pelos corredores em
direção à sala do chefe que a preterira. Abriu a porta decidida e já entrou
cheia de sedução. Ele levantou a cabeça dos papéis que examinava, mais surpreso
do que contrariado e ela foi logo tirando a capa e jogando por cima da mesa
dele. Com uma agilidade da qual nem ela suspeitava, deu a volta e sentou-se nas
pernas do homem boquiaberto, colando sua boca vermelha à dele, despenteando
seus cabelos e esfregando os braços perfumados em suas costas. Ele não chegou a
esboçar nenhuma reação, pelo inusitado e pelo pouco tempo decorrido até ouvir o
grito da noiva, estática, vermelha de ira, em pé na porta que ficara
propositalmente entreaberta.
Rosaura nem ficou para ouvir as explicações, censuras, ou
coisas do gênero. Pegou a capa, a bolsa, ajeitou o mini vestido que lhe deixara
as pernas à mostra, passou as mãos nos cabelos despenteados e olhou para
Marilda, com a boca manchada de batom e da saliva do noivo e um olhar que
guardara por meses e que dizia tudo.
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