quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

DECIFRA-ME!




O despertar não poderia ter sido pior.
Amargo como a boca de ressaca e como a consciência de quem tentara evitar o primeiro gole e a primeira tragada, sem sucesso.
Mais uma vez, sente-se invadido por um arrependimento irritado, um desprezo por si mesmo, um desencanto. E logo recomeçam os propósitos, as promessas agendadas, os lembretes colados na geladeira e no espelho do banheiro, uma frágil determinação que só se sustenta até a hora do sol se pôr e a noite espalhar seu manto, fingindo proteger os pecadores, os fracos, os que não sabem e pouco tentam resistir às tentações.
O sol inclemente estende seu dedo julgador ofuscando a cabeça pesada de álcool, nicotina e frustração.
O sol é o avesso do neon, mundos distintos que abrigam fiéis seguidores. Pobre do homem que ousar freqüentar os dois!
Tudo dói, por dentro e por fora e, ainda uma vez, pensa em cumprir as promessas recorrentes.
Por que aquela sensação inebriante de poucas horas atrás não permanecia com ele por mais tempo? Enquanto o êxtase perdurava tudo era justificado e parecia que a vida seria um desperdício se não fosse aproveitada assim.
Colocados na balança, os sentimentos e sensações do antes e do depois teriam igual peso. Eram profundos, avassaladores e verdadeiros, ainda que antagônicos.
Tinha que escolher um lado e perseverar nele. Ir ao fundo do poço, caso ainda não estivesse lá, ou ascender definitivamente ao mundo dos normais, tão invejados durante os dias e tão menosprezados nas madrugadas.
As mesmas lembranças que vinham emolduradas em fantasia depois da segunda dose caíam como chumbo em sua cabeça zonza nas manhãs. Os mesmos motivos que o levavam a brindar depois o cobravam impiedosamente. Os mesmos sorrisos que o acompanhavam amortecidos pelo álcool agora se contorciam em esgares tenebrosos e acusadores.
- Bom dia! Humilde, cabisbaixo, entre dentes, ninguém responde, nem mesmo os religiosos que passam apressados para suas obras de caridade. Ninguém o escuta, mesmo porque nada há para ser dito. Pelo menos nas noites boêmias ele ouve. E como ouve! Sempre fora monossilábico, no entanto prolixo de olhares, meios sorrisos, concordâncias.
Essas pessoas que passam com pressa para tudo e para nada, com cheiro de xampu e café, passos decididos, roupa lavada, agora lhe causam inveja; no entanto, poucas horas atrás eram motivo de escárnio e maldizer naquela mesa, com aqueles companheiros de sempre, tão diferentes.
Já tentara se enquadrar neste formato esperado e cobrado pela família, fingira adaptar-se para relembrar como era ser bem tratado, como era deixar de ouvir as mesmas recriminações diárias, mas sentira que ia murchando, ficando vazio, oco, completamente sem sentido ou consistência. A única parte boa era o despertar, com o hálito quase normal e a cabeça sem doer. Doía, no entanto, suportar, lúcido, à pequenez das pessoas, as mesquinharias, o disse-me-disse, a superficialidade de tudo e de todos à sua volta. O pior dos freqüentadores das pocilgas por onde andara se metendo parecia ter mais coisas a dizer do que seus colegas de repartição, que passavam uma manhã inteira reclamando da mulher, dos filhos, da sogra, do vizinho e assim imaginavam que sua vidinha cor-de-rosa fora preenchida.
Por outro lado, muitas vezes enojara-se de tanta vilania, tantos seres abjetos e insalubres reunidos no mesmo inferninho, tanta miséria humana passando pelas bordas da vida sem chance de mudar de lado.
O errado era ele. Ele era o inadaptado. Não havia lugar para gente como ele no mundo. Nascera sem medida e nunca conseguira ser um pouco alegre, um pouco sério, um pouco fiel, um pouco bêbado. Tudo era levado às últimas consequências e pagava sempre muito caro por isso.
O reverso do homem é ele mesmo. O ser humano é visceralmente bom, mas, quando é ruim, é péssimo! O álcool potencializa o canalha e o santo.
Vivia dizendo sim para todos os prazeres mundanos e tinha uma visão muito própria do pecado. Suas melhores transas sempre foram nas tardes de motel, com mulheres casadas, sérias e pudicas. Sim, para ele eram muito mais pecadoras e venenosas as puritanas mal amadas, que jamais se entregavam ao amor e viviam com a acidez do desejo apodrecendo dentro delas, do que essas esposas infiéis.
Passava indiferente aos olhares de reprovação, pena ou nojo dos transeuntes, pois já se habituara a eles. Até que uma pedra no caminho fê-lo tropeçar. As risadas, disfarçadas ou escancaradas, doíam mais que os olhares. Ele sabia que a queda não fazia parte do porre da véspera, do qual restara apenas a dor de cabeça e o gosto horrível na boca. Sabia que qualquer um poderia ter tropeçado e caído assim e que muitas mãos piedosas correriam para ajudar a levantá-lo. Não ele. Não aquele molambo fedendo a cachaça.
A pedra no meio do caminho, a pedra sob os pés, a pedra sobre a cabeça, a esfinge de pedra escondendo os segredos da vida. E o homem?
O homem caminha, desconhece a pedra, tropeça e descobre o reverso das coisas. Ou será o contrário?
A vida engole o homem, esmaga-o, indiferente aos seus questionamentos. E se não for assim?
Seria mais um bom motivo para reforçar sua decisão diurna de mudar de vida. Para assinalar no espelho do banheiro com ameaças abissais.
Se alguma maturidade fosse capaz de alcançá-lo, com certeza seria a de que ele era um caso perdido e que, enquanto existisse noite, bares e bebidas ele não conseguiria evitar o primeiro gole, tampouco os demais.
Um sino de igreja avisa que o dia está na metade e que as pessoas decentes devem fazer sua principal refeição.
Quem sabe num templo vazio ele encontra alguma resposta para sua vida perdida?
Entra.
Bancos duros, paredes úmidas e silenciosas, imagens acusadoras.
Desiste.
As verdades absolutas dependem da luz que incide sobre elas. Como vitrais de igreja, mudando de forma a seu bel prazer, confundindo, fascinando, paralisando quem apenas os observa.
O certo e o errado fluem por entre os dedos, misturam-se, atrapalham as tentativas de decifração. Hoje assim é porque assim parece. E amanhã?
Antes de sair, volta-se para o altar maior e pede uma solução para seus conflitos, uma resposta para o nonsense do seu cotidiano.
Perguntas e respostas, múltipla escolha, escreveu não leu, sim senhor, tem razão, desculpe, com licença, por aqui ou por ali, primeiro o ovo ou a galinha, vida após a morte, filho da mãe, quem é o pai, juro, nunca mais, abracadabra e agora José?
O sol, mais uma vez, ofusca-lhe a visão e lateja ainda mais as têmporas.
Esperançoso, aperta o passo de volta, quase saltitante, sem escutar o motor potente e o ruído dos pneus freando no asfalto.
Como uma resposta macabra, diz, em vão, seu primeiro:
 - Nããõ...




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