O despertar não poderia ter sido pior.
Amargo como a boca de ressaca e como a
consciência de quem tentara evitar o primeiro gole e a primeira tragada, sem
sucesso.
Mais uma vez, sente-se invadido por um
arrependimento irritado, um desprezo por si mesmo, um desencanto. E logo
recomeçam os propósitos, as promessas agendadas, os lembretes colados na
geladeira e no espelho do banheiro, uma frágil determinação que só se sustenta
até a hora do sol se pôr e a noite espalhar seu manto, fingindo proteger os
pecadores, os fracos, os que não sabem e pouco tentam resistir às tentações.
O sol inclemente estende seu dedo
julgador ofuscando a cabeça pesada de álcool, nicotina e frustração.
O sol é o avesso do neon, mundos
distintos que abrigam fiéis seguidores. Pobre do homem que ousar freqüentar os
dois!
Tudo dói, por dentro e por fora e,
ainda uma vez, pensa em cumprir as promessas recorrentes.
Por que aquela sensação inebriante de
poucas horas atrás não permanecia com ele por mais tempo? Enquanto o êxtase perdurava
tudo era justificado e parecia que a vida seria um desperdício se não fosse
aproveitada assim.
Colocados na balança, os sentimentos e
sensações do antes e do depois teriam igual peso. Eram profundos, avassaladores
e verdadeiros, ainda que antagônicos.
Tinha que escolher um lado e
perseverar nele. Ir ao fundo do poço, caso ainda não estivesse lá, ou ascender
definitivamente ao mundo dos normais, tão invejados durante os dias e tão menosprezados
nas madrugadas.
As mesmas lembranças que vinham
emolduradas em fantasia depois da segunda dose caíam como chumbo em sua cabeça
zonza nas manhãs. Os mesmos motivos que o levavam a brindar depois o cobravam
impiedosamente. Os mesmos sorrisos que o acompanhavam amortecidos pelo álcool
agora se contorciam em esgares tenebrosos e acusadores.
- Bom dia! Humilde, cabisbaixo, entre
dentes, ninguém responde, nem mesmo os religiosos que passam apressados para
suas obras de caridade. Ninguém o escuta, mesmo porque nada há para ser dito.
Pelo menos nas noites boêmias ele ouve. E como ouve! Sempre fora monossilábico,
no entanto prolixo de olhares, meios sorrisos, concordâncias.
Essas pessoas que passam com pressa
para tudo e para nada, com cheiro de xampu e café, passos decididos, roupa
lavada, agora lhe causam inveja; no entanto, poucas horas atrás eram motivo de
escárnio e maldizer naquela mesa, com aqueles companheiros de sempre, tão
diferentes.
Já tentara se enquadrar neste formato
esperado e cobrado pela família, fingira adaptar-se para relembrar como era ser
bem tratado, como era deixar de ouvir as mesmas recriminações diárias, mas
sentira que ia murchando, ficando vazio, oco, completamente sem sentido ou
consistência. A única parte boa era o despertar, com o hálito quase normal e a
cabeça sem doer. Doía, no entanto, suportar, lúcido, à pequenez das pessoas, as
mesquinharias, o disse-me-disse, a superficialidade de tudo e de todos à sua
volta. O pior dos freqüentadores das pocilgas por onde andara se metendo
parecia ter mais coisas a dizer do que seus colegas de repartição, que passavam
uma manhã inteira reclamando da mulher, dos filhos, da sogra, do vizinho e
assim imaginavam que sua vidinha cor-de-rosa fora preenchida.
Por outro lado, muitas vezes
enojara-se de tanta vilania, tantos seres abjetos e insalubres reunidos no mesmo
inferninho, tanta miséria humana passando pelas bordas da vida sem chance de
mudar de lado.
O errado era ele. Ele era o
inadaptado. Não havia lugar para gente como ele no mundo. Nascera sem medida e
nunca conseguira ser um pouco alegre, um pouco sério, um pouco fiel, um pouco
bêbado. Tudo era levado às últimas consequências e pagava sempre muito caro por
isso.
O reverso do homem é ele mesmo. O ser
humano é visceralmente bom, mas, quando é ruim, é péssimo! O álcool
potencializa o canalha e o santo.
Vivia dizendo sim para todos os prazeres mundanos e tinha uma visão muito própria
do pecado. Suas melhores transas sempre foram nas tardes de motel, com mulheres
casadas, sérias e pudicas. Sim, para ele eram muito mais pecadoras e venenosas
as puritanas mal amadas, que jamais se entregavam ao amor e viviam com a acidez
do desejo apodrecendo dentro delas, do que essas esposas infiéis.
Passava indiferente aos olhares de
reprovação, pena ou nojo dos transeuntes, pois já se habituara a eles. Até que
uma pedra no caminho fê-lo tropeçar. As risadas, disfarçadas ou escancaradas,
doíam mais que os olhares. Ele sabia que a queda não fazia parte do porre da
véspera, do qual restara apenas a dor de cabeça e o gosto horrível na boca.
Sabia que qualquer um poderia ter tropeçado e caído assim e que muitas mãos
piedosas correriam para ajudar a levantá-lo. Não ele. Não aquele molambo
fedendo a cachaça.
A pedra no meio do caminho, a pedra
sob os pés, a pedra sobre a cabeça, a esfinge de pedra escondendo os segredos
da vida. E o homem?
O homem caminha, desconhece a pedra,
tropeça e descobre o reverso das coisas. Ou será o contrário?
A vida engole o homem, esmaga-o,
indiferente aos seus questionamentos. E se não for assim?
Seria mais um bom motivo para reforçar
sua decisão diurna de mudar de vida. Para assinalar no espelho do banheiro com
ameaças abissais.
Se alguma maturidade fosse capaz de
alcançá-lo, com certeza seria a de que ele era um caso perdido e que, enquanto
existisse noite, bares e bebidas ele não conseguiria evitar o primeiro gole,
tampouco os demais.
Um sino de igreja avisa que o dia está
na metade e que as pessoas decentes devem fazer sua principal refeição.
Quem sabe num templo vazio ele
encontra alguma resposta para sua vida perdida?
Entra.
Bancos duros, paredes úmidas e
silenciosas, imagens acusadoras.
Desiste.
As verdades absolutas dependem da luz
que incide sobre elas. Como vitrais de igreja, mudando de forma a seu bel
prazer, confundindo, fascinando, paralisando quem apenas os observa.
O certo e o errado fluem por entre os
dedos, misturam-se, atrapalham as tentativas de decifração. Hoje assim é porque
assim parece. E amanhã?
Antes de sair, volta-se para o altar maior
e pede uma solução para seus conflitos, uma resposta para o nonsense do seu cotidiano.
Perguntas e respostas, múltipla
escolha, escreveu não leu, sim senhor, tem razão, desculpe, com licença, por
aqui ou por ali, primeiro o ovo ou a galinha, vida após a morte, filho da mãe,
quem é o pai, juro, nunca mais, abracadabra e agora José?
O sol, mais uma vez, ofusca-lhe a
visão e lateja ainda mais as têmporas.
Esperançoso, aperta o passo de volta,
quase saltitante, sem escutar o motor potente e o ruído dos pneus freando no
asfalto.
Como uma resposta macabra, diz, em
vão, seu primeiro:
-
Nããõ...
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