sábado, 9 de janeiro de 2016

A PEDRA FILOSOFAL




Aparentemente, ela estava alheia a tudo e a todos, numa atitude de indiferença que preocupava a família e os raros amigos. Mas era só aparência. Na realidade, sua mente criativa estava incubada, mergulhada num laboratório de alquimista próprio, buscando verdades absolutas e a pedra filosofal. O tempo, célere, a impulsionava a isso; um dia teria de parar e se olhar no espelho interno, buscando justificativas para tudo o que fora, fizera e sentira até então. Seria isso ou passar incólume pela vida, num sem sentido absoluto e eterno de quem desperdiçou uma chance única de entender essa avalanche de acontecimentos que compõem a caminhada da existência.
A tônica de seus dias estava sendo, há muito, a desesperança. Perdera a fé no ser humano e lutava para não desacreditar no seu Criador. Tanto tempo ensinando nas escolas e aquelas crianças se transformando nos adultos poluidores, corruptos e egocêntricos que povoavam as manchetes dos jornais. Os que ficaram ricos esbanjando estupidez, os pobres revoltados e descrentes e os da classe média gritando no vazio contra tudo e contra todos.
Tentando acompanhar a tal modernidade, em nome da qual se apregoam todas as barbáries da civilização, procurou participar das redes sociais, numa busca desenfreada dos amigos lá de trás, da sua ingenuidade, da sua esperança, de si mesma. O que encontrou foi a cara dos ditos amigos estampada nos descendentes deles e os próprios já gordos, velhos, do feitio que eram seus pais e avós na sua meninice. Constatou, amargurada, que isso era pior do que folhar velhos álbuns de fotografias, uma vez que nesses, ao menos, ela retinha as lembranças do momento e naqueles do computador não havia um elo entre o que foram e no que se tornaram. Não para ela.
Aprendera que seu país era subdesenvolvido, depois em desenvolvimento e, por fim, figurava numa pseudo liderança espúria dos pobres da América do Sul. “Europa, sempre Europa, a gloriosa; a mulher deslumbrante e caprichosa, rainha e cortesã” - no dizer do jovem prodígio Castro Alves - ícone de desenvolvimento, educação, história, polimento... quem dera! Foi só começar a perder dinheiro e a brutalidade humana aflorou, tão bárbaros quanto qualquer outro ser humano que vê sua economia ir por água abaixo, suas regalias serem cortadas, seu poder aquisitivo diminuir. E patrocinou um quebra-quebra igual ou pior aos dos primatas do Terceiro Mundo (qual é o segundo mesmo?).
Além disso, continuavam pipocando no planeta, agora expostos pela globalização, regimes ditatoriais que, aliados à estupidez e arrogância humanas, continuavam cometendo mais atrocidades que as impostas a Jesus Cristo no Calvário. E como a bestialidade é ultrajante!
A busca do amor, daquela plenitude amorosa que impulsionava os jovens do seu tempo chegou a um denominador comum; o tal “felizes para sempre”, na verdade, consistia em matar um leão por dia, em viver polindo arestas e fazendo concessões e todas as tentativas de mudança, a não ser nos casos patológicos, terminavam caindo na vala comum das conveniências e das negociações familiares. Enquanto perduraram os hormônios gostara de todos os homens em geral e de muitos em particular, tudo fora mais apimentado, mais robusto, mais passional. Depois, a razão prevaleceu e se fortaleceram as válvulas de escape, o lazer, as viagens, os passatempos. Constatou que, nos casais que geraram descendentes, essa fase ficava mais facilitada, mais justificada, menos questionável. E outros prazeres iam sendo descobertos através da prole.
A crise do “espelhamento” já fora superada, afinal, a gente acaba se acostumando com tudo, mesmo com os defeitos que o espelho teima em mostrar, como se pudessem ser retocados ou corrigidos com aqueles estojinhos de maquilagem.
Era o momento de se ver por dentro, de se analisar e entender como sujeito, único e absoluto, de uma existência que lhe fora ofertada e a qual ela desperdiçara grande parte com coisas desimportantes, ou que nada lhe acrescentaram.
Num fastio de si mesma, numa intolerância abissal com o semelhante, poucos caminhos havia a percorrer: fechar-se qual ostra, fugir para seu mundo particular dos livros, agredir a todos que a perturbavam com suas pequenezes, gritar, mergulhar nas ondas frias do mar ou no gelo da bebida, ou continuar sorrindo, falando, fingindo concordar, escondendo os bocejos, fechando os olhos.
A necessidade de isolamento esbarrava, então, na insuficiente solidão povoada, sem os disfarces de encontrar em si própria a melhor companhia e no fato concreto de que cartas, telefonemas e recordações não bastavam para preencher a casa e a vida vazia.
A procura do sentido maior para a vida, num ponto em que o sofrimento ameaçava saturar, foi interrompida de repente. Não, não caiu a maçã em sua cabeça como na lenda da gravidade. Mas caiu em sua mão um comprimidinho sorridente que, se não lhe mostrou a pedra filosofal, deu-lhe a deliciosa sensação de que a vida era linda e que o sentido dela era o que menos importava!
Pelo menos até o próximo comprimido.



Do meu livro de contos "Decifra-me!"

Um comentário:

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

O sentido da vida: todo o mundo o imagina como a chegada a um destino, quando ele é, em realidade, não a chegada, mas a caminhada na procura; mais ou menos o que disse Eduardo Galeano sobre a utopia: "Camino dos pasos, ella se aleja dos pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. ¿Entonces para que sirve la utopía? Para eso, sirve para caminar."