Aparentemente,
ela estava alheia a tudo e a todos, numa atitude de indiferença que preocupava
a família e os raros amigos. Mas era só aparência. Na realidade, sua mente
criativa estava incubada, mergulhada num laboratório de alquimista próprio, buscando
verdades absolutas e a pedra filosofal. O tempo, célere, a impulsionava a isso;
um dia teria de parar e se olhar no espelho interno, buscando justificativas
para tudo o que fora, fizera e sentira até então. Seria isso ou passar incólume
pela vida, num sem sentido absoluto e eterno de quem desperdiçou uma chance
única de entender essa avalanche de acontecimentos que compõem a caminhada da
existência.
A tônica de
seus dias estava sendo, há muito, a desesperança. Perdera a fé no ser humano e
lutava para não desacreditar no seu Criador. Tanto tempo ensinando nas escolas
e aquelas crianças se transformando nos adultos poluidores, corruptos e
egocêntricos que povoavam as manchetes dos jornais. Os que ficaram ricos
esbanjando estupidez, os pobres revoltados e descrentes e os da classe média
gritando no vazio contra tudo e contra todos.
Tentando
acompanhar a tal modernidade, em nome da qual se apregoam todas as barbáries da
civilização, procurou participar das redes sociais, numa busca desenfreada dos
amigos lá de trás, da sua ingenuidade, da sua esperança, de si mesma. O que
encontrou foi a cara dos ditos amigos estampada nos descendentes deles e os
próprios já gordos, velhos, do feitio que eram seus pais e avós na sua
meninice. Constatou, amargurada, que isso era pior do que folhar velhos álbuns
de fotografias, uma vez que nesses, ao menos, ela retinha as lembranças do
momento e naqueles do computador não havia um elo entre o que foram e no que se
tornaram. Não para ela.
Aprendera que
seu país era subdesenvolvido, depois em desenvolvimento e, por fim, figurava numa
pseudo liderança espúria dos pobres da América do Sul. “Europa, sempre Europa,
a gloriosa; a mulher deslumbrante e caprichosa, rainha e cortesã” - no dizer do
jovem prodígio Castro Alves - ícone de desenvolvimento, educação, história,
polimento... quem dera! Foi só começar a perder dinheiro e a brutalidade humana
aflorou, tão bárbaros quanto qualquer outro ser humano que vê sua economia ir
por água abaixo, suas regalias serem cortadas, seu poder aquisitivo diminuir. E
patrocinou um quebra-quebra igual ou pior aos dos primatas do Terceiro Mundo
(qual é o segundo mesmo?).
Além disso,
continuavam pipocando no planeta, agora expostos pela globalização, regimes
ditatoriais que, aliados à estupidez e arrogância humanas, continuavam
cometendo mais atrocidades que as impostas a Jesus Cristo no Calvário. E como a
bestialidade é ultrajante!
A busca do
amor, daquela plenitude amorosa que impulsionava os jovens do seu tempo chegou
a um denominador comum; o tal “felizes para sempre”, na verdade, consistia em
matar um leão por dia, em viver polindo arestas e fazendo concessões e todas as
tentativas de mudança, a não ser nos casos patológicos, terminavam caindo na
vala comum das conveniências e das negociações familiares. Enquanto perduraram
os hormônios gostara de todos os homens em geral e de muitos em particular, tudo
fora mais apimentado, mais robusto, mais passional. Depois, a razão prevaleceu
e se fortaleceram as válvulas de escape, o lazer, as viagens, os passatempos. Constatou
que, nos casais que geraram descendentes, essa fase ficava mais facilitada,
mais justificada, menos questionável. E outros prazeres iam sendo descobertos
através da prole.
A crise do
“espelhamento” já fora superada, afinal, a gente acaba se acostumando com tudo,
mesmo com os defeitos que o espelho teima em mostrar, como se pudessem ser
retocados ou corrigidos com aqueles estojinhos de maquilagem.
Era o momento
de se ver por dentro, de se analisar e entender como sujeito, único e absoluto,
de uma existência que lhe fora ofertada e a qual ela desperdiçara grande parte
com coisas desimportantes, ou que nada lhe acrescentaram.
Num fastio de
si mesma, numa intolerância abissal com o semelhante, poucos caminhos havia a
percorrer: fechar-se qual ostra, fugir para seu mundo particular dos livros,
agredir a todos que a perturbavam com suas pequenezes, gritar, mergulhar nas
ondas frias do mar ou no gelo da bebida, ou continuar sorrindo, falando,
fingindo concordar, escondendo os bocejos, fechando os olhos.
A necessidade
de isolamento esbarrava, então, na insuficiente solidão povoada, sem os
disfarces de encontrar em si própria a melhor companhia e no fato concreto de
que cartas, telefonemas e recordações não bastavam para preencher a casa e a
vida vazia.
A procura do
sentido maior para a vida, num ponto em que o sofrimento ameaçava saturar, foi
interrompida de repente. Não, não caiu a maçã em sua cabeça como na lenda da
gravidade. Mas caiu em sua mão um comprimidinho sorridente que, se não lhe
mostrou a pedra filosofal, deu-lhe a deliciosa sensação de que a vida era linda
e que o sentido dela era o que menos importava!
Pelo menos até
o próximo comprimido.
Do meu livro de contos "Decifra-me!"
Um comentário:
O sentido da vida: todo o mundo o imagina como a chegada a um destino, quando ele é, em realidade, não a chegada, mas a caminhada na procura; mais ou menos o que disse Eduardo Galeano sobre a utopia: "Camino dos pasos, ella se aleja dos pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. ¿Entonces para que sirve la utopía? Para eso, sirve para caminar."
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