quarta-feira, 5 de outubro de 2011

DEU CUPIM



“A fotografia e a escrita são uma tentativa de guardar os momentos antes que se desvaneçam, de fixar as lembranças para dar sentido à vida.”
(Isabel Allende)


Nada menos poético do que o cupim, aquele bichinho nojento que invade nossos móveis de madeira mais caros, principalmente em cidades à beira mar. De aparência revoltante, causa terror ao deixar um rastro de partículas de madeira, ou formando crateras no plástico, nos livros, onde consegue se instalar.
Pois foi “naquele” grande armário, feito sob medida para o quarto dos meninos, onde repousam meus tesouros de lembranças, que os detestáveis resolveram se instalar, aproveitando o fato dos donos do quarto já não residirem aqui e abrirem raramente as tantas portas do móvel.
Convoquei dona Dilma, minha ajudante há quase vinte anos e fomos juntas desmontar e limpar tudo. Tarefa bem cansativa, por sinal.
Acontece que, junto ao trabalho braçal veio um bem mais rico em significado – o de revisitar minhas lembranças, inclusive para arejá-las, perfumá-las e tornar a guardar, pra quê nem sei.
Roupinhas de bebê tricotadas por minha avó e por minha mãe. Roupas de veludo do primeiro aniversário de cada um deles, confeccionadas com o capricho inconfundível da dona Lívia Motta, de Alegrete. Fantasias de carnaval, uniformes do Jardim de Infância, toucas de natação, os primeiros cadernos, as camisetas do colégio na adolescência, devidamente autografadas pelos colegas e até “caixinhas dos mistérios” cheias de recordações do que era significativo para eles: um pião, uma foto dos pais, uma estrela da farda do pai, um chaveirinho da mãe, bolinhas de gude, desenhos, bilhetes, cartas do meu pai para eles, transbordando de conselhos e carinhos, cartinhas das primeiras namoradas, cartões, fotos, enfim, o mundo dos filhos antes vivenciado por mim a cada dia e hoje permeado pelo tempo, pela distância e pelas voltas que a vida dá.
É inimaginável a sensação de admirar aquele varal cheio de roupinhas de uma infância feliz – ah, que foi feliz isso foi! – como se, de uma hora para outra, eu fosse ouvir o som das vozes deles falando juntos, morrendo de rir, entusiasmados com as descobertas, fazendo malcriação, inventando artes, sujando a roupa, despenteando o cabelo, arranhando o sapato. E eu fiquei ali, acompanhando o balanço do vento nos lençóizinhos bordados, nas mantas de crochê que consumiram dias e noites da minha avó, nos braços roliços enfiados naquelas jaquetas, em tudo o que foi e que permanece cristalizado em mim.
Sem querer, acabei dando um profundo mergulho no tempo e senti saudades de cada um dos meus gurizinhos e também de mim. Daquela mãe jovem, esbelta, dinâmica, organizada, centralizadora, perfeccionista, exigente, absurdamente madura para a pouca idade, que se derretia em carinhos, beijos e abraços para cada um de seus tesouros e que, até hoje, tem certeza de que seu mundo só gira porque eles estão nele.
Pois é, desta vez, nem dá pra amaldiçoar tanto os cupins!

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