Pela enésima vez, diante do espelho, ela suspirava, falando baixinho: no verão escureço e estou sempre úmida de suor; no outono laranjeio e bergamoteio; no inverno resseco e arrepio e na primavera floresço, coço e espirro. Ai de mim!
Como ficar contente com a imagem que seu algoz lhe devolvia, se nunca conseguia ver nela o cabelo sedoso, os olhos claros, a pele alva de suas colegas e das artistas de cinema que achava bonitas de enjoar? Mesmo que fizesse misérias, usasse todos os produtos, todas as técnicas, nada a transformaria na mulher que sonhara ser. Estava farta de mentir para si mesma e para os outros, dizendo que se achava bonita, que enxergava suas qualidades, que tinha orgulho de sua raça. Mentiras deslavadas! Isso só poderia acontecer se ela ainda vivesse na África, como seus ancestrais, onde todos são parecidos com ela e aprendem, desde cedo, a se valorizar. Mas não, o preconceito velado era faca afiada que a retalhava diariamente e precisava se justificar a todo instante, provando que era capaz, que era honesta, que não cheirava mal e que não vivia de rebolar as cadeiras para os homens das outras.
Poderia, ao menos, ter nascido em estados bem miscigenados e não naquele fim de mundo, colonizado por arianos, onde as crianças eram quase transparentes ao nascer e seus cabelos não formavam sequer cachinhos nas pontas, de tão lisos. Além disso, toleravam os mestiços, os pardos, os negros, desde que seus filhos não se envolvessem de perto com nenhum deles. Um descendente mulato numa família daquelas seria uma tragédia!
Meus pais não me deram olhos claros, nem pela macia, mas me chamaram de Felicidade, para ver se a santa me ajudava a ser feliz. E ela ajudou, enquanto fui criança, até que meus amigos percebessem a diferença e sorvessem o fel das palavras de seus pais. Fui feliz antes de estudar sobre a escravidão no colégio e perceber a identificação que todas aquelas crianças loiras faziam comigo. Nesse momento, eu me senti diferente, me senti bicho, extraterrestre, coisa nenhuma. Minha alma adolesceu dolorida, revoltada, como se a vida tivesse me pregado uma peça e minha família fosse culpada de eu ter nascido assim.
Os meninos só falavam comigo quando não havia ninguém por perto e eu percebia os seus olhares cobiçosos para minha bunda dura e meus peitos empinados. As meninas faziam sorrisinhos à boca pequena cada vez que eu tentava domar a carapinha teimosa que herdara dos meus pais. As piadinhas pipocavam nos corredores da escola e eu já não confiava em ninguém, rancorizando as antigas amizades, cada vez mais desconfortável dentro daquela armadura escura e daquele cabelo áspero e armado.
Foi assim que amarguei, azedei, desandei a vida. Já não tinha sonhos e planos cor-de-rosa, era tudo escuro como eu. Só não me lamentava. Assoprava as dores sozinha e guardava as mágoas bem escondidas e protegidas como as sementes do romã. Não ia dar a eles o gosto de me ver sofrer por algo que eu não podia mudar, ainda que quisesse.
Poderia tentar ser a melhor aluna da classe, como forma de chamar a atenção para além da minha aparência externa; no entanto, não encontrava motivação para muitos esforços, uma vez que estava fadada a ser sempre a diferente, a feia esforçada, a defeituosa, a inexata. Alguns professores tentavam me motivar e pregavam a igualdade e outros blá-blá-blás que só pioravam as coisas, pois faziam todo mundo fingir ainda mais e depois esboçar aqueles risinhos de puro maldizer.
Até que um dia, quando o sol dormiu um pouco mais e levantou disposto a incendiar o mundo, na volta do colégio, resolvi nadar no riozinho que serpenteava perto da minha casa. Olhei para os lados, não vi ninguém, fui para detrás de um arbusto, tirei toda roupa, arrumei dobrada numa pedra para não sujar e entrei na água fresquinha, assim como vim ao mundo. Sensação maravilhosa, de uma liberdade que eu não tinha, de uma simbiose perfeita com a natureza, um frescor de alma, um respirar profundo. Nadei, nadei e depois fiquei boiando, admirando o azul límpido do céu de brigadeiro, quase sem nuvens. Encarei o sol e fiquei cega momentaneamente, no exato momento em que ouvi um ruído nas folhas secas, do lado onde deixara meu uniforme. Só consegui vislumbrar um vulto se afastando ligeiro e levando, depois constatei, minha calcinha amarela que ficara dentro do jeans. Assustada, me vesti às pressas e corri para casa, sem contar a ninguém sobre a minha aventura.
Passei a noite tentando imaginar quem seria o homem (era um homem, disso eu tinha certeza) que estivera me espionando e ainda levara uma peça tão íntima minha, sabe-se lá com que finalidade. No dia seguinte, olhava para todos com desconfiança e esperava, a qualquer momento, um comentário maldoso, uma indireta, um deboche. Na volta do recreio lá estava, na minha carteira, a manifestação temida. Alguém escrevera na minha mesa da sala de aula, com giz colorido, em letras garrafais - NEGRA LINDA! E assim passaram a me chamar na escola, na rua, em toda a cidade. Por deboche, ou seja lá porque outro motivo, deixei de ser Felicidade para ser Negralinda e, a seguir, Negrilin.
Nunca descobri quem estivera no lago naquela tarde, no entanto, notei alguma mudança nos rapazes, que me olhavam com mais insistência, até com certo atrevimento e desafiavam a desfaçatez das loiras meninas, incluindo-me nas conversas e até me pedindo algumas opiniões. Foi assim que participei do baile de formatura do Ensino Médio, dançando com alguns colegas, com os homens da minha família e acreditando um pouco nas juras da minha mãe, de que eu era linda, que meu corpo era perfeito, que meus dentes eram brancos e parelhos, que meu cabelo não despenteava com qualquer ventinho e que eu podia sonhar com tudo o que eu quisesse.
Vendo mais de perto os rapazes da minha turma, dançando com eles, descobri, contrariada, que não sentia o prazer que esperava sentir, o gosto da pele, o cheiro bom, a vontade de enfiar os dedos nas cabeleiras macias; ao contrário, achei os beijos gelados, de língua estática, um cheiro temperado no pescoço e as mãos pouco hábeis na minha cintura. Foi decepcionante! Será que eu continuava estranha, diferente, inadaptada? O que mais podia desejar?
Culpando a juventude, meus pais garantiam que tudo era passageiro e que logo eu me apaixonaria por um daqueles rapazes elegantes, de boa família e futuro promissor.
Não foi o que aconteceu.
Em mais uma tarde tórrida, quando caminhava para casa contemplando a correnteza do riacho, com a espuma alva cascateando nas pedras, me senti tomada por um impulso irrefreável que me fez entrar na água. Sofregamente, fui me libertando das peças de roupa, que ficaram jogadas pelos arbustos e pedras ribeirinhas. Outro banho nua, sendo que, desta vez, jogando para o alto a calcinha mais bonita e fazendo pose na hora de mergulhar.
Nadei, boiei, mergulhei, brinquei com os peixinhos e já estava quase indo embora quando ouvi o barulho de alguém se jogando na água atrás de mim. Virei estátua gelada na hora. Sem ousar virar a cabeça, tentei proteger os seios com as mãos e entrei mais fundo na água, de mansinho, tentando não mostrar nenhum centímetro de pele, a boca seca, o coração tiquetaqueando.
Meus pés cimentaram no fundo do lago e eu não conseguia me mexer, nem emitir qualquer som.
Minutos seculares se passaram até que ouvi e senti uma respiração quente, um cheiro de coisa boa, perto da minha nuca molhada. A pele encrespou, o sangue gelou e ferveu em desabalada corrida pelas veias, a visão embaçou, os olhos pestanejaram e eu me senti desfalecer. Completamente tomada pelas mais inebriantes sensações, sem sequer ver o rosto de quem se aproximara, senti suas mãos tateando as linhas do meu corpo, explorando todos os recantos, colando-se às minhas costas exalando desejo. Completamente vencida, girei a cabeça num torpor de alucinógenos e encarei o negro lindo, forte, que eu nunca tinha visto antes por ali, mas que parecia esperar por ele há muito tempo. Um pas de deux envolvente foi dançado ali mesmo, na água, na grama, na terra, como balé de muitos ensaios, numa sincronia perfeita, numa fome secular entre um rei e uma rainha de outro continente, até o desfalecimento total.
Um braço forte me trazia firmemente colada ao seu peito e, na outra mão, uma calcinha amarela voltava para sua dona.
E foi assim que, na véspera de ontem, Negrilin florificou!
3 comentários:
AMEI, AMEI, AMEI...Manteve-me sob suspense, com total curiosidade e atenção, até o belíssimo final!
Uauuu!! Que coisa mais linda este conto!! Enebriante, nos prende...queremos ver o fnal!! Este teu conto lembrou-me Jorge Amado! Tereza Batista,Gabriela Cravo e Canela,num estilo picante!! Parabéns!!
Uauuu!! Que coisa mais linda este conto!! Enebriante, nos prende...queremos ver o fnal!! Este teu conto lembrou-me Jorge Amado! Tereza Batista,Gabriela Cravo e Canela,num estilo picante!! Parabéns!!
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