terça-feira, 22 de janeiro de 2019

MINHA FILHA MAIS VELHA


Do meu ventre nasceram três filhos homens. Que são a luz, a essência e o motivo maior da minha existência.
Meus tantos alunos (numa média de 300 ao ano por 30 anos) foram também um pouco meus filhos, com muitos deles mantenho um apego e um aconchego materno até hoje.
Meus netos são filhos com açúcar e cuido deles com o maior zelo e dedicação.
Agora tenho uma filha, a mais velha de todos, quase centenária na verdade e que ainda chamo de “Mãe”. É sobre ela que quero falar hoje.
Ela tem 100 anos. Isso mesmo. 100 anos! E é diferente de todas as idosas que já vi na vida. Sente calor, veste saias, vestidos, bermudas e blusas de mangas curtas e decotes o verão inteiro. Toma, diariamente, um banho de chuveiro, outro de creme e outro de perfume. Dorme tarde e não janta antes da 20h30min. Nos finais de semana exige um cálice pequeno de Amarula antes do almoço e prefere sempre os bombons com licor. Gosta da mesa cheia, com muitas crianças em volta, começa a refeição sempre com uma sopa de legumes e come sozinha, de tudo um pouco, sem dispensar a sobremesa e o chá. Prefere ouvir notícias a novelas e também os jogos do seu time de futebol. É gentil com todas as pessoas e adora abraços, beijos, carinhos. Reza bastante e diz que sonha muito com gente que já morreu (quase todos os seus amigos).
Minha mãe é completamente lúcida e recém sua memória começou a encurtar um pouco. Uma lucidez benfazeja, mas que maltrata um pouco pelo descompasso com as limitações físicas da idade. Nesse ponto é que ela vai se tornando mais minha filha, embora ainda seja o meu carinho maior como mãe.
Graças ao meu pai, ela tem uma pensão que lhe permite ser muito bem cuidada, com tudo que precisa e deseja. Ele a amava tanto que deve ficar feliz ao ver que sua amada realmente desfruta de tudo o que pode melhorar sua qualidade de vida, minimizando tanto quanto possível suas deficiências.
Mesmo assim, não foi fácil percorrer todos os oftalmologistas da cidade tentando fazê-la enxergar e encomendando lupas do mundo inteiro, já que a leitura sempre foi essencial na sua vida e ela não se conformava de não poder mais ler. O diagnóstico de degeneração macular foi um golpe terrível e logo contratei uma leitora para tentar minimizar essa perda, lendo para ela 4 horas por dia, desde a Bíblia, os jornais e um romance por vez. Bem nessa época tive ruptura de retina e não pude continuar desempenhando essa função. Muitas horas de lamentação, muita tristeza permearam nossas conversas e nosso tempo juntas. E novamente  a sensação de impotência que já tinha sentido quando meu pai perdeu a visão e minha avó parou de caminhar.
Depois foi a audição que principiou a diminuir... exames, testes, lamentos, irritação... e a difícil adaptação ao aparelho auditivo, com trocas constantes de pilha e muita contrariedade. E lá estava eu levando aos exames, fazendo moldes, pedindo paciência, contornando as desavenças com as cuidadoras, exigindo profissionalismo, pagando por todos os extras (de graça elas não dão nem bom-dia).
Quando os movimentos se tornaram mais difíceis, foi a hora de colocar corrimões na casa toda, muitas barras de apoio nos banheiros e, mesmo assim, ela sofreu quedas assustadoras que, felizmente, não tiveram maiores consequências. Pelo menos para ela, porque passei maus bocados acudindo. Então, ela teve que aceitar alguém sempre ao seu lado, o que ocasionou muitas querelas. Minha missão de pacificadora aumentou bastante.
Depois de alguns tombos feios, foi preciso adicionar ao aparato uma cadeira de banho... que ficou encostada por meses já que, segundo ela, parecia com cadeira de rodas e ela se recusava a sentar. Muitas cadeiras comuns foram destruídas sob o chuveiro até que ela se resignou, sempre com aquela tristeza de ter perdido mais uma batalha.
Moro no primeiro andar e minha mãe/filha no térreo. Ela subia as escadas para todas as comemorações e almoços dominicais. Ouvia-me tocar piano, falava com o neto do Japão pelo computador e gostava de mudar de ares. Até que não conseguiu mais subir e eu tive que transferir minha cozinha para a casa dela nos encontros familiares. Porque meus filhos, noras e netos não admitem nenhum encontro da família em que ela não esteja junto. Nem eu.
Quando a distância para o banheiro ficou longa e os remédios para dormir deixavam o corpo mole, foi a vez da introdução da fralda noturna. Não sem antes haver resistência e mais algumas quedas no banheiro. Meu poder de pacificação e convencimento novamente foi requerido e consegui, pesarosa também, que ela admitisse usar mais aquele aparato.
Há pouco tempo suas pernas falharam e ela não conseguiu mais caminhar. Momento de tristeza imensa, depressão, tentativas frustradas com o fisioterapeuta de anos e a aceitação mais difícil de todas – a da cadeira de rodas. Lágrimas, revolta, desânimo... e, mais uma vez, a sensação de impotência diante do que eu não conseguia mudar.
Para cuidar bem dela temos quase uma microempresa. E não é nada fácil administrar horários, características, temperamentos, salários de tanta gente... é bem desgastante! Uma hérnia de disco e o compromisso de ser babá dos netos não me impede de cuidar dessa filha mais velha bem de perto, mas me limita em alguns gestos. Já sou da terceira idade também e carrego compras, frutas, remédios como um jovem menino de recados, pois tudo que suas funcionárias exigem é sempre “pra ontem”.
Quase não saio, não viajo, nem à praia vou, mas passo muitas horas por dia ao lado da poltrona dessa filha, que sempre tem histórias para recordar, perguntas a fazer, reclamações ou pedidos. Conto para ela tudo de interessante que vejo nas redes sociais, recados e beijos que os amigos lhe mandam, fofocas da política, enfim, aproveito sua lucidez para interagir com ela.
Minha filha requer toda minha atenção, no entanto, quem ganha mais com isso sou eu, que tenho ao meu lado a pessoa que mais me ama no mundo e que jamais seria contra mim em nada. Sempre tivemos temperamentos muito diferentes e, por isso mesmo, discordamos em muitas coisas. Sou mais parecida com meu pai em muitos aspectos e aprecio a paz, o sossego, tudo o que propicia ler e escrever com profundidade. Já ela gosta de agitação, de barulho, de gente em volta e, quando podia, quase não parava em casa. Eu sou caseira, adoro arrumar gavetas, organizar coisas e minha mãe sempre foi a rainha da bagunça, salva pelas tantas auxiliares que sempre teve.
Acho que minha mãe até que aceitou muitas mudanças no mundo, demais até para uma pessoa vivenciar, talvez por ser adaptável, por gostar de gente jovem e por nunca se sentir velha. Nessas horas também ela é mais minha filha do que minha mãe, porque muitas vezes me sinto mais velha que ela.
Quando assistimos aos telejornais ela fica indignada. Diz que os outros países só mostram o que têm de bom e que o Brasil só mostra os fracassos, os erros, as coisas ruins. Diz que tem certeza de que existe muita gente boa no Brasil fazendo coisas maravilhosas e que a TV e os jornais nunca mostram isso, concluindo que é por isso que o brasileiro não tem autoestima e sempre se acha pior que os outros.
De uma família de políticos, do PTB, do PSD e do UDN, lamenta que as ideologias já não possam conviver e acha que a retidão dos militares será  benéfica para reorganizar o Brasil.
Minha filha mais velha não gosta de falar em morte, é bem reservada quanto a seus questionamentos e suas dores, prefere sempre se interessar pelos jovens e pelas crianças da família, que são sua vitamina maior.
Dia a dia sinto sua voz mais fraquinha, seu sorriso mais raro, suas despedidas mais demoradas. Claro que sofro com isso.... e estou sempre procurando minimizar seus desconfortos, alegrar seus dias, atender seus pedidos. Ela sempre foi a minha confidente, mas hoje em dia evito levar problemas aos seus ouvidos cansados, porque ela fica muito impressionada com tudo, dorme mal e não lhe faz bem.
Volta e meia ela diz que nunca imaginou viver até os 100 anos... e convida as pessoas que a visitam para sua festa de 101. Ainda bem!






4 comentários:

Josete Martins do Canto disse...

Amei ler a tua transição de filha a mãe! És uma pessoa formidável, íntegra e amorosa, a quem DEUS confiou está missão de ser Filha/Mãe! Sou fã incondicional de vocês duas! FORÇA E FÉ! AMEI! AMEI! AMEI! Beijos e abraços da Jô!

Marilene disse...

Bah, Maria Luiza!! Que coisa mais emocionante este texto!! És uma pessoa como poucas!! Te doas muito e amas com muita intensidade!! Deus te abençoe e te dê, sempre, condições de enfrentar as adversidades!! Te admiro demais!! Grande abraço!!❤

Unknown disse...

Q lindo
Ela deve ter era muito tô orgulho de vc.
Parabéns as duas
Bis

Nádia Oliveira de Souza disse...

Maravilhoso, chorei demais!!!