Vivia num eterno
escorregar, escapulir, driblar. Conformando-se, resignando-se, pollyanamente
procurando o lado B, a saída, o alívio. Volta e meia se deparava com sinais
difíceis de compreender, como os números repetidos que teimavam em aparecer no
relógio digital, na tela do telefone celular, no computador. Diziam que era
normal, que acontecia com todo mundo, mas a ela não parecia comum acordar
sempre às 2:22, ou às 4:44. Não podia ser coincidência sempre encontrar um
11:11 ou 17:17 quando consultava o celular para algum compromisso. Mais impressionante era o fato de que a esses
episódios sempre se seguia uma notícia ruim, uma desavença, um achaque.
Sua rotina
costumava ser constantemente quebrada por razões alheias, sua vida não lhe
pertencia e, sem ter conseguido se diplomar em nada, parecia que tinha
Pós-graduação em assistência social, tal o volume de tarefas e pedidos que a
cercavam. Pau para toda obra, ombro amigo, socorro familiar, saco de pancadas,
tudo isso a definia muito bem. Perdera a juventude e a escassa beleza a serviço
dos outros e agora amargava a decrepitude ainda socorrendo um e outro, sem a
menor vocação, prazer algum, por uma imposição da própria vida.
Nos raros momentos
seus, refugiava-se no prazer secreto dos livros, dos romances açucarados. Mesmo
sem grandes estudos, gostava das palavras e da sensualidade que as frases
formavam ao juntá-las. Lendo, sonhava pela mão de outrem. Nunca tivera amores
tão reais, tão cheios de vida como aqueles dos romances. Nas incursões pelas
redes sociais, encontrava antigos amores, reais e platônicos, sempre
sorridentes e bem acompanhados, viajando pelo mundo, desfrutando uma vida que
ela só via mesmo na tela do computador. No começo, se deslumbrava com as
paisagens e os relatos dos viajantes, depois concluía que olhava para tudo como
se fosse míope, distante, desfocado, artificial. Onde seus pés não pisaram,
suas mãos não tocaram, só valia o relato, a imaginação de quem os descrevera, e
isso era muito pouco para ela.
Não fora sempre
assim. Até os insetos possuem uma vida secreta e com ela não fora diferente.
Durante a invasão hormonal, suspirara em muitas camas, cometera excessos
pecaminosos, grudara no corpo suores masculinos e gozos memoráveis em camas nem
sempre limpas, em horários inusitados, com homens que nunca seriam seus.
Momentos que só valiam enquanto duravam, mas que possuíam uma intensidade
incomparavelmente maior que a da sua triste vida cotidiana. Sentir era mais
importante do que viver e nesses momentos fugazes ela sentia e se reconhecia.
Com a boca amarga da bebida barata, o corpo dolorido das orgias sexuais, a
cabeça explodindo pelo excesso de álcool, ela voltava para casa e se
penitenciava limpando, cuidando, prometendo não repetir o que lhe dava prazer,
promessas essas que tinham apenas a duração da ressaca.
Quando um sol enlouquecido arrancava as
pessoas de seus esconderijos, ela corria ao templo mais próximo, para ouvir o
silêncio, um silêncio tão profundo que dava para escutar até as pedras dos
altares respirando. Sob a face contrita, de joelhos diante dos santos,
escondia-se uma doidivanas assim que as luzes da noite se acendiam e que se via
num outro mundo, protegida pelo anonimato, em companhias tão aventureiras como
ela, ávidas por descobrir o fascínio do submundo e a desafiar seus perigos.
Assim que a lua saltava sobre os telhados e principiavam a serem ouvidas as
vozes da noite, a beleza escassa era fartamente suprida pelo arrebatamento,
pela entrega, pela intensidade com que se apoderava do mundo nos raros momentos
de liberdade e o proibido, o pecaminoso, dava ainda mais sabor às transgressões
e ao gozo. Não que só ali ela fosse inteira, porque suas duas faces, embora
antagônicas, eram bem reais. Acontece que seu lado devota enchia-lhe de uma
culpa difícil de suportar, precisando ser amenizada com muitas doses da cuba
libre barata, com rum ordinário, em copo de plástico. Já que certamente iria
para o Inferno, então que queimasse de desejo e de prazer enquanto pudesse.
Nesse tempo, não
haviam números repetidos, nem telas onde consultá-los. Era sempre hora de
apressar a chegada da noite para escapulir, enganar a supervisão, ousar,
desafiar os perigos, viver intensa e perigosamente. O futuro a Deus pertence e
Ele certamente estaria lhe reservando uma expiação à altura dos seus pecados,
ainda que só fizesse mal a si mesma. E muito bem também.
O tempo passou e
levou a juventude com ele. Os parceiros foram rareando, construindo seus
caminhos e ela foi murchando, juntando os cacos, num arrependimento tardio e
incólume pelas alegrias que tivera, arrastando culpas pesadas que, somadas aos
novos encargos, deixavam-na cada vez mais velha, mais cansada, menos viva. Uma
sensação de estranhamento que não lhe permitia se reconhecer em nenhum papel,
todos inadequados, desconfortáveis, supérfluos. Como nunca descobrira em si
qualidades que atraíssem alguém, nunca pudera acreditar que alguém se sentisse
atraído por ela. Nem simpatia, nem compaixão, só recebera desdém das pessoas e
mesmo desprezo de algumas.
Esquecera-se de sorrir e mais suspirava que
falava. Desenvolvia seus incontáveis afazeres como parte da expiação de suas
culpas e só encontrava algum alento na leitura de romances e nas redes sociais,
onde não escrevia uma só palavra, mas vivia a vida dos outros. Foi aí que as
aparições de números repetidos começaram.
Aconselhada por uma
amiga, resolveu consultar um vidente, que lhe afirmou serem esses números
avisos de algum espírito, para se preparar que algo de ruim iria acontecer. E
sempre acontecia. E eram sempre coisas desagradáveis. Mas por que o tal
espírito não desviava os acontecimentos, então? De que adiantava avisar?
Aos poucos, sua
visão foi escurecendo, as dores nas costas aumentando e nem as histórias e
poemas de amor conseguiam melhorar seus dias. Cansou de ver gente sorrindo na
tela do computador, viagens para lugares que nem sonhava existir, feitas pelos
outros, crianças maravilhosas que ela jamais conhecera, correntes e orações
para desconhecidos, receitas de comidas para almoços familiares, totalmente inadequadas
à sua solidão. E, assim, desistiu também das redes sociais. Um sentimento
indefinível tomava conta dela, um misto de tédio, humilhação e fadiga. Não
queria mais imaginar a vida alheia, aquela monotonia de sorrisos já não a
satisfazia e tudo voltava sempre ao ponto de partida, ao encontro amargo consigo
mesma e com toda a aridez do seu caminho.
Exaurida de dores e
achaques, enxergando pouco e mal, seus dias passaram a ser uma contagem
regressiva para um despertar em outra dimensão, onde faria tudo diferente,
encontraria pessoas queridas, investiria mais na sua própria vida. Não era
forte, nem nobre o suficiente para a resignação. Mesmo não tendo quem a
ouvisse, queixava-se. E se indignava com a ingratidão humana. Já não tinha mais
ânimo de fugir e ser perseguida pelos fantasmas do passado e pelas decepções do
presente. Parecia que sua alma estava cansada da vida.
Uma vez que já não
podia ajudar muito, que seus olhos cansados e a saúde frágil não lhe permitiam
mais carregar o mundo nas costas, foi ficando de lado, esquecida,
desconsiderada, tratada como um brinquedo quebrado, com a bateria gasta. A
ninguém interessavam suas horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões. Numa
sensação absurda e justa reparou, num relâmpago íntimo, que não era nada. Não
sabia pensar, nem sentir, nem querer, nem sonhar direito soubera. Sua alma era
fraca, sem entusiasmo natural, forjada em ruínas e desistências.
Presa à cama,
entrevada e quase cega, ela reviveu todos os momentos que compuseram o mosaico
da sua triste vida. Na suavidade do momento derradeiro, gostaria de ser uma
figura estética, como uma pintura num quadro – mas nem isso era. Ainda bem que não podia ver o próprio rosto,
tampouco fitar seus olhos. Melhor assim. Como um leque que se abre, ela foi descortinando
os momentos esfuziantes de sua pobre vida, fútil vida, desperdiçada existência.
E outra vez se vê cantando, dançando, sentindo prazer. Num delírio benfazejo,
volta a sentir aquela perturbação intensa que bloqueia a razão diante do ser
amado, aqueles calafrios, os batimentos acelerados, as mãos úmidas na antessala
do beijo, o desfalecimento, a entrega. E
se encanta, tripudia, rodopia, fica tonta de prazer e de uma alegria inusitada
e premonitória.
Depois, os aromas
da noite entram-lhe na alma como um nevoeiro que a conduzirá para um sono cheio
de eternidade. A febre é benfazeja porque induz aos devaneios e ao esquecimento
de tudo o que não fora, da sua incompetência total para a vida. Lembra-se de
ter lido num romance que nesse mundo somos apenas passageiros, viajando de dia
para dia, de estação para estação no comboio do destino. As luzes vão se apagando,
a vida sucumbindo e ela, finalmente, exibe um sorriso no rosto marcado pelo
tempo. Tudo o que dorme é criança de novo e assim, entre sombras, ela visualiza
o rádio relógio com seus números grandes, antes de se entregar ao sono
profundo.
Ele marcava 3:33.
5 comentários:
Duas faces.
Não gostei do uso de "pollyannamente" pois exige do leitor um conhecimento anterior que nem todos tem. Exatamente a que se refere, a Pollyanna -peça infanto juvenil de 1913 ou a Pollyanna Moça, livro de 1915 ou algum outro livro da série que se estende até 1990, já com outros autores?
Adorei: reflete muito bem a saga da maioria das pessoas que deixam de ser protagonistas de sua história, vivendo o que a vida lhes proporciona, numa eterna gangorra de ações impensadas e arrependimentos,chegando ao arrependimento final,tardio e inútil.
Não entendi o significado do parágrafo final "Ele marcava 3:33".
Algo a ver com Apocalipse?
Meu dileto amigo, refiro-me ao “jogo de contente” da Pollyana.
Nunca quis ler o Apocalipse.
Queria saber tua opinião sobre a forma, mais até do que o conteúdo.
Poucas pessoas respeito e considero opiniões sobre o texto em si. Tu és uma delas.
A forma, como sempre, é perfeita. Apenas acredito que o conteúdo é mais importante que a forma. Claro que o conto tem conteúdo, mas ainda gosto mais de Decifra-me.
Ambos sem finais felizes... a realidade sempre se sobressaindo, não tem jeito.
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