domingo, 19 de novembro de 2017

GATO E RATO



                           Vivia num eterno escorregar, escapulir, driblar. Conformando-se, resignando-se, pollyanamente procurando o lado B, a saída, o alívio. Volta e meia se deparava com sinais difíceis de compreender, como os números repetidos que teimavam em aparecer no relógio digital, na tela do telefone celular, no computador. Diziam que era normal, que acontecia com todo mundo, mas a ela não parecia comum acordar sempre às 2:22, ou às 4:44. Não podia ser coincidência sempre encontrar um 11:11 ou 17:17 quando consultava o celular para algum compromisso.  Mais impressionante era o fato de que a esses episódios sempre se seguia uma notícia ruim, uma desavença, um achaque.
                          Sua rotina costumava ser constantemente quebrada por razões alheias, sua vida não lhe pertencia e, sem ter conseguido se diplomar em nada, parecia que tinha Pós-graduação em assistência social, tal o volume de tarefas e pedidos que a cercavam. Pau para toda obra, ombro amigo, socorro familiar, saco de pancadas, tudo isso a definia muito bem. Perdera a juventude e a escassa beleza a serviço dos outros e agora amargava a decrepitude ainda socorrendo um e outro, sem a menor vocação, prazer algum, por uma imposição da própria vida.
                             Nos raros momentos seus, refugiava-se no prazer secreto dos livros, dos romances açucarados. Mesmo sem grandes estudos, gostava das palavras e da sensualidade que as frases formavam ao juntá-las. Lendo, sonhava pela mão de outrem. Nunca tivera amores tão reais, tão cheios de vida como aqueles dos romances. Nas incursões pelas redes sociais, encontrava antigos amores, reais e platônicos, sempre sorridentes e bem acompanhados, viajando pelo mundo, desfrutando uma vida que ela só via mesmo na tela do computador. No começo, se deslumbrava com as paisagens e os relatos dos viajantes, depois concluía que olhava para tudo como se fosse míope, distante, desfocado, artificial. Onde seus pés não pisaram, suas mãos não tocaram, só valia o relato, a imaginação de quem os descrevera, e isso era muito pouco para ela.
                            Não fora sempre assim. Até os insetos possuem uma vida secreta e com ela não fora diferente. Durante a invasão hormonal, suspirara em muitas camas, cometera excessos pecaminosos, grudara no corpo suores masculinos e gozos memoráveis em camas nem sempre limpas, em horários inusitados, com homens que nunca seriam seus. Momentos que só valiam enquanto duravam, mas que possuíam uma intensidade incomparavelmente maior que a da sua triste vida cotidiana. Sentir era mais importante do que viver e nesses momentos fugazes ela sentia e se reconhecia. Com a boca amarga da bebida barata, o corpo dolorido das orgias sexuais, a cabeça explodindo pelo excesso de álcool, ela voltava para casa e se penitenciava limpando, cuidando, prometendo não repetir o que lhe dava prazer, promessas essas que tinham apenas a duração da ressaca.
                              Quando um sol enlouquecido arrancava as pessoas de seus esconderijos, ela corria ao templo mais próximo, para ouvir o silêncio, um silêncio tão profundo que dava para escutar até as pedras dos altares respirando. Sob a face contrita, de joelhos diante dos santos, escondia-se uma doidivanas assim que as luzes da noite se acendiam e que se via num outro mundo, protegida pelo anonimato, em companhias tão aventureiras como ela, ávidas por descobrir o fascínio do submundo e a desafiar seus perigos. Assim que a lua saltava sobre os telhados e principiavam a serem ouvidas as vozes da noite, a beleza escassa era fartamente suprida pelo arrebatamento, pela entrega, pela intensidade com que se apoderava do mundo nos raros momentos de liberdade e o proibido, o pecaminoso, dava ainda mais sabor às transgressões e ao gozo. Não que só ali ela fosse inteira, porque suas duas faces, embora antagônicas, eram bem reais. Acontece que seu lado devota enchia-lhe de uma culpa difícil de suportar, precisando ser amenizada com muitas doses da cuba libre barata, com rum ordinário, em copo de plástico. Já que certamente iria para o Inferno, então que queimasse de desejo e de prazer enquanto pudesse.
                               Nesse tempo, não haviam números repetidos, nem telas onde consultá-los. Era sempre hora de apressar a chegada da noite para escapulir, enganar a supervisão, ousar, desafiar os perigos, viver intensa e perigosamente. O futuro a Deus pertence e Ele certamente estaria lhe reservando uma expiação à altura dos seus pecados, ainda que só fizesse mal a si mesma. E muito bem também.
                               O tempo passou e levou a juventude com ele. Os parceiros foram rareando, construindo seus caminhos e ela foi murchando, juntando os cacos, num arrependimento tardio e incólume pelas alegrias que tivera, arrastando culpas pesadas que, somadas aos novos encargos, deixavam-na cada vez mais velha, mais cansada, menos viva. Uma sensação de estranhamento que não lhe permitia se reconhecer em nenhum papel, todos inadequados, desconfortáveis, supérfluos. Como nunca descobrira em si qualidades que atraíssem alguém, nunca pudera acreditar que alguém se sentisse atraído por ela. Nem simpatia, nem compaixão, só recebera desdém das pessoas e mesmo desprezo de algumas.
                               Esquecera-se de sorrir e mais suspirava que falava. Desenvolvia seus incontáveis afazeres como parte da expiação de suas culpas e só encontrava algum alento na leitura de romances e nas redes sociais, onde não escrevia uma só palavra, mas vivia a vida dos outros. Foi aí que as aparições de números repetidos começaram.
                             Aconselhada por uma amiga, resolveu consultar um vidente, que lhe afirmou serem esses números avisos de algum espírito, para se preparar que algo de ruim iria acontecer. E sempre acontecia. E eram sempre coisas desagradáveis. Mas por que o tal espírito não desviava os acontecimentos, então? De que adiantava avisar?
                              Aos poucos, sua visão foi escurecendo, as dores nas costas aumentando e nem as histórias e poemas de amor conseguiam melhorar seus dias.  Cansou de ver gente sorrindo na tela do computador, viagens para lugares que nem sonhava existir, feitas pelos outros, crianças maravilhosas que ela jamais conhecera, correntes e orações para desconhecidos, receitas de comidas para almoços familiares, totalmente inadequadas à sua solidão. E, assim, desistiu também das redes sociais. Um sentimento indefinível tomava conta dela, um misto de tédio, humilhação e fadiga. Não queria mais imaginar a vida alheia, aquela monotonia de sorrisos já não a satisfazia e tudo voltava sempre ao ponto de partida, ao encontro amargo consigo mesma e com toda a aridez do seu caminho.
                                Exaurida de dores e achaques, enxergando pouco e mal, seus dias passaram a ser uma contagem regressiva para um despertar em outra dimensão, onde faria tudo diferente, encontraria pessoas queridas, investiria mais na sua própria vida. Não era forte, nem nobre o suficiente para a resignação. Mesmo não tendo quem a ouvisse, queixava-se. E se indignava com a ingratidão humana. Já não tinha mais ânimo de fugir e ser perseguida pelos fantasmas do passado e pelas decepções do presente. Parecia que sua alma estava cansada da vida.
                              Uma vez que já não podia ajudar muito, que seus olhos cansados e a saúde frágil não lhe permitiam mais carregar o mundo nas costas, foi ficando de lado, esquecida, desconsiderada, tratada como um brinquedo quebrado, com a bateria gasta. A ninguém interessavam suas horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões. Numa sensação absurda e justa reparou, num relâmpago íntimo, que não era nada. Não sabia pensar, nem sentir, nem querer, nem sonhar direito soubera. Sua alma era fraca, sem entusiasmo natural, forjada em ruínas e desistências.
                             Presa à cama, entrevada e quase cega, ela reviveu todos os momentos que compuseram o mosaico da sua triste vida. Na suavidade do momento derradeiro, gostaria de ser uma figura estética, como uma pintura num quadro – mas nem isso era.  Ainda bem que não podia ver o próprio rosto, tampouco fitar seus olhos. Melhor assim. Como um leque que se abre, ela foi descortinando os momentos esfuziantes de sua pobre vida, fútil vida, desperdiçada existência. E outra vez se vê cantando, dançando, sentindo prazer. Num delírio benfazejo, volta a sentir aquela perturbação intensa que bloqueia a razão diante do ser amado, aqueles calafrios, os batimentos acelerados, as mãos úmidas na antessala do beijo, o desfalecimento, a entrega.  E se encanta, tripudia, rodopia, fica tonta de prazer e de uma alegria inusitada e premonitória.
                             Depois, os aromas da noite entram-lhe na alma como um nevoeiro que a conduzirá para um sono cheio de eternidade. A febre é benfazeja porque induz aos devaneios e ao esquecimento de tudo o que não fora, da sua incompetência total para a vida. Lembra-se de ter lido num romance que nesse mundo somos apenas passageiros, viajando de dia para dia, de estação para estação no comboio do destino. As luzes vão se apagando, a vida sucumbindo e ela, finalmente, exibe um sorriso no rosto marcado pelo tempo. Tudo o que dorme é criança de novo e assim, entre sombras, ela visualiza o rádio relógio com seus números grandes, antes de se entregar ao sono profundo.
                             Ele marcava 3:33. 





5 comentários:

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

Duas faces.
Não gostei do uso de "pollyannamente" pois exige do leitor um conhecimento anterior que nem todos tem. Exatamente a que se refere, a Pollyanna -peça infanto juvenil de 1913 ou a Pollyanna Moça, livro de 1915 ou algum outro livro da série que se estende até 1990, já com outros autores?

Adorei: reflete muito bem a saga da maioria das pessoas que deixam de ser protagonistas de sua história, vivendo o que a vida lhes proporciona, numa eterna gangorra de ações impensadas e arrependimentos,chegando ao arrependimento final,tardio e inútil.

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

Não entendi o significado do parágrafo final "Ele marcava 3:33".
Algo a ver com Apocalipse?

Maria Luiza Vargas Ramos disse...

Meu dileto amigo, refiro-me ao “jogo de contente” da Pollyana.
Nunca quis ler o Apocalipse.
Queria saber tua opinião sobre a forma, mais até do que o conteúdo.
Poucas pessoas respeito e considero opiniões sobre o texto em si. Tu és uma delas.

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

A forma, como sempre, é perfeita. Apenas acredito que o conteúdo é mais importante que a forma. Claro que o conto tem conteúdo, mas ainda gosto mais de Decifra-me.

Maria Luiza Vargas Ramos disse...

Ambos sem finais felizes... a realidade sempre se sobressaindo, não tem jeito.