terça-feira, 3 de janeiro de 2017

ROTINAS



                            A cada dia fica mais penoso o amanhecer. As noites são sobressaltadas, entremeadas de vozes, pesadelos, suores, pensamentos sombrios e idas ao banheiro. Quando a claridade perpassa a cortina da janela sem persiana, ela se limita a virar de costas, apertar mais os olhos, indiferente ao mostrador do rádio relógio, já enumerando mentalmente as coisas sem importância e sem alegria que terá de fazer naquele dia. No espelho grande ao lado da cama constata, mais uma vez, os estragos que a passagem do tempo e a sua indiferença fizeram ao seu corpo, outrora bem delineado. A lingerie moderna só faz acentuar o desgaste e ela sacode a cabeça diante  da imagem disforme que o espelho lhe devolve. Os cabelos desgrenhados, as bolsas sob os olhos, nada lhe agrada e ela vira de costas, preferindo a claridade da janela àquele juiz tão cruel. Sem vontade alguma escorrega para o chão, calça os chinelos e repete os hábitos de higiene mecanicamente, sem um sorriso, sem nenhum entusiasmo para o dia que começa para ela, tarde para os outros. Serve uma caneca de água bem gelada, toma o remédio para a gastrite e senta no escritório para ler e escrever. São os melhores momentos do seu dia.  Felizmente, sua aversão ao telefone foi aceita pela família e pelos amigos e só recebe mensagens de texto no celular, telefonemas apenas em casos extremos e urgentes.
                            Durante muitos anos foi pró-ativa, saltava da cama antes do sol já com a agenda lotada e sempre se achando atrasada para alguma coisa. Seu dia era cheio de compromissos, aulas, filhos, e toda uma rotina de mulheres que são chefes de família. Apesar da genética familiar tendendo para a obesidade, nem precisava se preocupar com regimes, tal a correria que enfrentava diariamente. A energia e a vontade de viver e vencer eram tantas que ainda se dava ao desplante de frequentar uma academia de ginástica, mesmo com três empregos e uma família para cuidar. Espartana com ela e com a descendência, exigia empenho e resultados de todos, principalmente dela mesma. E ainda encontrava tempo e muita disposição para o amor, que, no fim das contas, foi o que sempre a impulsionou na vida. Estava constantemente apaixonada e dali tirava a motivação necessária para se cuidar, para progredir, para cantar e dançar muito.
                             No meio da manhã, terminada a água e as primeiras leituras, vai para a cozinha tomar café, sempre com a cabeça longe, no que lera ou escrevera, querendo adiar ao máximo o enfrentamento com as outras pessoas, com as cobranças do dia, com as solicitações familiares e os compromissos chatos. Realiza os serviços domésticos mecanicamente, sem entusiasmo algum e só se detém um pouco na sacada, admirando o desabrochar de suas plantinhas, o colorido das pimentas e a hibernação das orquídeas. No chuveiro segue sorumbática, antevendo a chatice das filas nos bancos, o sol inclemente de final de verão, o almoço sempre na hora certa, com as mesmas pessoas e os mesmos assuntos, além da cantilena exaustiva da cozinheira nordestina, cuja garganta parece uma metralhadora giratória disparando milhares de palavras das quais não se entende nem a metade. Ali fica a par dos problemas e necessidades de toda família, desde a mãe idosa até a neta mais nova, passando pelos casais. É o momento em que seus préstimos são solicitados, as cobranças feitas e cada um volta ao seu mundo, seu trabalho, sua rotina.
                             Houve um tempo em que, entre o turno da manhã e o da tarde, ela precisava comprar comida, reunir-se aos filhos no almoço em casa, ruidosos, falantes, alegres até nas adversidades. A grana era pouca, o trabalho muito e a juventude escorria pelas paredes, encantando os espelhos com a beleza de cada um, sonorizando a casa com as trilhas sonoras de seus habitantes, livros e roupas espalhadas, poucos enfeites, poucos porta-retratos, almofadas sempre amarrotadas num canto do sofá, onde alguém lia ou estudava para a prova. A porta da geladeira não parava fechada e as compras no supermercado, gigantescas, duravam muito pouco. Havia energia no ar, entusiasmo, porque havia um futuro a ser descortinado, um mundo a conquistar, mil amores à espreita, viagens, aventuras, profissão, trabalho, tudo ainda uma incógnita que permitia muitos sonhos e elucubrações. Apesar dos compromissos, havia muito mais liberdade! Cada um reinava em seu mundo e, desde que cumprisse suas tarefas e levasse os estudos e trabalhos a sério, podia fazer do seu lazer o que bem entendesse, sem maiores explicações.
                             A aposentadoria lhe trouxe muito menos tempo para ser livre, para ser dona de seu nariz. Junto com ela vieram vários entraves, alguns doces, outros nem tanto, que a acorrentaram numa rotina exaustiva, girando vários mundos ao seu redor, fixando horários, cobranças, algemas que na juventude não existiam. Essa historia de fazer do seu tempo o que bem entendesse não era para ela. Precisava avisar, confirmar, pedir autorização, marcar hora para voltar, enfim, uma envelhescente fiscalizada, cobrada, solicitada. Durante o tempo em que estivera trabalhando, se imaginava na aposentadoria em cruzeiros, praias desertas, países diferentes, vivendo avidamente o que a labuta de tantos anos não lhe permitira viver. Qual o quê! Nunca fora boa em tomar as decisões mais certas e dessa vez não fora diferente. Escolhera alguém para compartilhar essa última etapa da vida que não gostava genuinamente de quase nada que ela amava, que não tinha vontade de viajar, de dançar, de conhecer, de ser feliz enquanto desse. E esse era um dos grandes motivos dos olhos opacos e dos quilos a mais...
                           Afundada no sofá ela contempla o excesso poluidor dos porta-retratos, que escondem seus livros preferidos e desfilam na sua frente como justificativas para tantas coisas na vida. Formaturas, batizados, casamentos, sorrisos, uma volta constante ao passado, uma referência presente às ausências. Onde estão todos eles? Como seriam suas fotografias nesse exato momento? Ainda saberiam sorrir?
                           Num tempo não tão remoto a família dispunha de apenas um carro de segunda mão para todos usarem. Levava o que tivesse compromisso mais importante e mais longe. Era comum dois casais de namorados terem que passear junto. O dinheiro era curto, pois os filhos faziam cursos universitários com aulas o dia inteiro e não podiam trabalhar. Era o futuro deles sendo construído. No apartamento alugado as janelas não tinham persianas (era um costume local nas construções) e as cortinas estavam bem além das posses familiares. Os livros, os cursos e a alimentação eram as prioridades. O lazer se resumia a muita praia, que todos adoravam. Biquínis minúsculos e todo mundo perguntando se ela era irmã dos filhos. Logo, foram colocados papéis contacto nas vidraças para quebrar o sol e os olhares indiscretos. Deitada de costas na cama ela fitava os buracos onde deveriam estar as luminárias e se programava para fazer isso tão logo sobrasse algum dinheiro. Nunca sobrou. As economias foram guardadas para as formaturas e os álbuns caríssimos, onde os filhos posavam sorridentes e vitoriosos ao lado das namoradas e, mais tarde, outras namoradas destruíam esses mesmos álbuns ou os condenavam ao ostracismo no fundo dos armários.
                           Para driblar a luz excessiva do sol ela puxa as cortinas fartas e forradas, com belos puxadores. Acende as luminárias da sala para conferir se não há poeira nos vidros e nos lustres. No banheiro, regula os espelhos de aumento fixados na parede para ajudarem na correção das imperfeições antes da maquilagem. Abre o armário do quarto e admira os cabides organizados por cor, com aquelas roupas caras e largas, de tecidos leves para marcar menos seu corpo avantajado. Põe alguns maiôs grandes, de boa marca, numa sacola, pois pretende passar na casa de praia a fim de resolver algumas coisas por lá.
                         Em tempos de dinheiro curto e muitas atividades, ela se formou em fazer composições. Volta e meia precisava colocar um alfinete de segurança no cós das saias e calças, pois a cintura só diminuía. Pouca roupa, lisas, encorpadas, macacões, tubinhos, bermudas e shorts, calças justas, saias curtas, sapatos de salto alto. O importante era a diversão e tudo lhe caía bem, de qualquer maneira. Aprendera a se maquiar, a fazer as unhas e a se depilar. Deixara o cabelo crescer livre e nunca se sentira tão bonita e tão feliz.
                         Uma rápida olhada ao espelho, apenas para verificar algum problema mais grave, sem se ater aos detalhes que só a entristecem. Pega as chaves do carro novo, sempre a sua espera na garagem, fecha a porta sem olhar para trás, rememora todas as pendências que precisa resolver naquele dia e sai.
                          A rotina de estudos e trabalho era extenuante. Provas e livros se espalhavam pela mesa da sala até a madrugada. Poucas horas de sono e ainda uma noite por semana de festa, baladas e muita dança. A juventude aguentava bem. Mas já caía na cama dormindo e assim ficava, sem sequer se virar a noite toda, até o despertador tocar. Era fácil arrumar a cama de manhã, pois as cobertas mal tinham saído do lugar.
                          Depois de passar o dia a serviço da família, suas noites são só dela. Para assistir o que lhe der na telha na TV e preparar lanches gostosos só para si, acompanhados de um bom vinho tinto. Ao invés de remédios, vinho. O sono chega com mais facilidade, principalmente enquanto está no sofá da sala. Depois do primeiro cochilo, vai para a cama. E aí o sono vai embora.
                          Nesse ponto, basta ler o começo do conto para saber o que vem a seguir.
                          Boa noite!





Nenhum comentário: