segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A PIOR TRAIÇÃO



“Quando eu vi você tive uma idéia
brilhante. Foi como eu olhasse de
dentro de um diamante e meu olho
ganhasse mil faces, num só instante.”
Paulo Leminski

Ela andava evitando o espelho já há algum tempo. Nesse dia, tomou coragem e se postou diante do maior da casa, aquele que vinha acompanhando sua família há muitas gerações. Lentamente, aproximou o rosto até enxergar as linhas maiores que o tempo e os problemas tinham desenhado nele. Não gostou nada do que viu. Sentiu pena daquela mulher triste que a encarava. Continuou a análise pelos cabelos, sempre com teimosas raízes brancas e tão pouco brilho. Pareceu-lhe que sua vasta e indomável cabeleira diminuíra consideravelmente e já não dispunha do frescor da juventude para contrabalançar os fios rebeldes. Afastou-se um pouco e examinou as roupas largas e surradas, usadas em tantos invernos. Triste figura. Como não percebera antes que já era velha?!
Velha. Ve-lha! Se alguém lhe chamasse assim morreria na hora, no entanto, era isso mesmo que era. Uma mulher velha.
Passava o tempo todo se revestindo de desculpas para não se cuidar e os anos se apoderaram da pouca beleza que tinha, sem que ela percebesse. Dessa vez, nem fora preciso colocar os óculos de grau para que a realidade desabasse sobre ela. Velha e feia. Mal cuidada, gorda, desajeitada.
Nos últimos anos vivera pelos outros, cuidara da família inteira, cozinhara banquetes, recebera pouco reconhecimento e alguns elogios. Agora se dava conta de que os elogios já não eram para a sua pessoa e sim para seus pratos, sua dedicação, suas habilidades.
Como levara tanto tempo para se dar conta de sua derrocada como mulher? Desde o momento em que começara a evitar as fotos, já era um prenúncio da decadência que hoje lhe fora revelada.
Ele tinha sido seu grande amor! O mais bonito, o mais bem sucedido, o mais isso e aquilo, o perfeito! Conhecera-o adolescente e tivera com ele uma relação forte e fugaz por mais de quarenta anos. Nunca fora “oficialmente” nada para ele, mas jamais se perderam de vista e o amor permanecia lá, “num estojo de veludo”, como ele lhe dissera tantas vezes. Dele ouvira os elogios mais doces e recebera os maiores carinhos. Nos momentos de maior intimidade, ele afirmava que o amor só duraria para sempre se continuasse livre da rotina sufocante do casamento e foi desse jeito que se mantiveram unidos, mesmo de longe, sofrendo a ação do tempo e da distância, no entanto sem cair no esquecimento. Ainda segundo ele, a rotina, as coisas que ocupavam o dia-a-dia dos mortais comuns não deveriam influir naquele amor primordial.
Ela aprendera com o neto a usar o computador e a encontrar amigos e amores no mundo virtual e nas redes sociais. Logo descobriu o perfil de seu grande amor numa dessas redes e sempre visitava a página dele, austera, discreta, com pouquíssimas fotos e referências pessoais. Daquele jeito de ser dele.
Nessa tarde, sentou-se para ver as fotos do casamento do filho de uma colega de trabalho, no estilo hippie, tão diferente dos seus filhos, que casaram com pompa, circunstância e rios de dinheiro desperdiçado, uma vez que mal acabava a lua-de-mel e o sorriso deles já se tinha apagado, talvez para sempre.
Seguindo as festas e as fotos dos conhecidos, desembocou numa imagem que mudou completamente o curso da sua vidinha medíocre. Lá estava ele, ao lado de uma bela mulher mais jovem, com carrões, sorrisos, lugares românticos, e declarações de felicidade. Procurou mil defeitos na tal fulana e só conseguiu comprovar sua elegância e beleza. Era o fim. Não que ele nunca tivesse tido outras mulheres, mas eram todas inferiores a ela, mais velhas, mais gordas, mais ranzinzas. Agora não. Dessa vez ela fora covardemente substituída por alguém muito melhor e isso era desesperador. Além disso, a moça loira, de olhos claros e longos cabelos, portava um cigarro entre os dedos, que certamente lhe ajudava a manter a elegância. Ele também fumava, portanto, o cheiro não devia lhe incomodar. Pior para ela, que engordara tanto ao parar de fumar que até anulara a vantagem do seu perfume e dos dentes brancos.
O sentimento que a invadiu instantaneamente foi de luto. Uma palavra não lhe saía da cabeça: “amada”. A mulher não dizia às amigas que o amava, mas que estava sendo “amada” como nunca!
 Acabara de perder a tramontana e sua cabeça girava como um peão, sem saber o que fazer, que rumo tomar, ou o que esperar da vida. Foi quando decidiu ter um encontro sem disfarces com o espelho e suas últimas esperanças caíram por terra.
A foto da mulher sorridente e enlevada, fotografada pelo homem a quem amara durante toda a vida não lhe saía da cabeça. Encheu um copo de uísque, cowboy como ele apreciava, e dessa vez nem fez caretas, pois não sentia o sabor. O álcool aqueceu o sangue e permitiu às lágrimas aflorarem aos olhos, geladas, contidas, antecipando a vingança que certamente iria acontecer.
Trair o marido, ou a esposa, não é nada diante da traição primordial e visceral do amor. Não se pode trair o amor! É a negação, em sua forma mais ampla, da humanidade do homem. Ele existe, é gente, porque ama. E esse sentimento não deve ser atraiçoado!
Mesmo sem ter havido um acordo, ela nunca o procurara: era sempre ele quem tomava a iniciativa, ainda que se passassem anos, como agora.
Só que, desta vez, ela queria ver com seus próprios olhos, constatar “in loco” aquela efusiva felicidade alardeada pela outra nas redes sociais.
E foi.
Há tempos não pegava a estrada sozinha, entretanto, este não era um assunto para se levar acompanhantes.
Chegou à noitinha, a tempo de vê-lo sair, lindo e bem vestido como sempre, acompanhado da loira saltitante das fotos.
“- Parece que as rivais das morenas são sempre loiras!”, pensou consigo mesma.
Seguiu-os e esperou pacientemente que jantassem, dançassem e resolvessem ir embora. Não sabe quanto tempo se passou. Seu coração estava sossegado demais. O sangue fluía lentamente nas veias e as mãos descansavam firmes no volante.
Chegara a hora.
Enquanto ele esperava o manobrista trazer seu modelo de último tipo,  ela desceu, pegou a bolsa e até colocou o alarme no próprio carro.
Seus passos firmes dirigiam-se ao casal na beira da calçada, quando ouviu o ronco potente do motor, a freada, os gritos e... lá estava seu grande amor estendido no asfalto.
Correu.
Nem sabe como conseguiu, mas correu.
Jogou-se pesadamente no chão ao seu lado e segurou suas mãos frias. Nem por um instante temeu não ser reconhecida, apesar dos mais de dez anos de mudanças físicas para pior.
Ele dirigiu a ela um olhar vidrado, tentou esboçar um meio sorriso e sussurrou:
- Lua...
A loira indignou-se:
- Então é esta a “lua” que você finge procurar no céu, como um astronauta? Ou que invoca tantas vezes durante o sono? É esta?!
As mãos firmemente entrelaçadas aproximavam as almas, que já se preparavam para sair em outras viagens.
Ela, lívida, ainda teve tempo de murmurar:
- E ele... ele é o meu Sol!






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