“Quando eu vi você tive
uma idéia
brilhante. Foi como eu
olhasse de
dentro de um diamante e
meu olho
ganhasse mil faces, num
só instante.”
Paulo Leminski
Ela andava
evitando o espelho já há algum tempo. Nesse dia, tomou coragem e se postou
diante do maior da casa, aquele que vinha acompanhando sua família há muitas
gerações. Lentamente, aproximou o rosto até enxergar as linhas maiores que o
tempo e os problemas tinham desenhado nele. Não gostou nada do que viu. Sentiu
pena daquela mulher triste que a encarava. Continuou a análise pelos cabelos,
sempre com teimosas raízes brancas e tão pouco brilho. Pareceu-lhe que sua
vasta e indomável cabeleira diminuíra consideravelmente e já não dispunha do
frescor da juventude para contrabalançar os fios rebeldes. Afastou-se um pouco
e examinou as roupas largas e surradas, usadas em tantos invernos. Triste
figura. Como não percebera antes que já era velha?!
Velha. Ve-lha!
Se alguém lhe chamasse assim morreria na hora, no entanto, era isso mesmo que
era. Uma mulher velha.
Passava o tempo
todo se revestindo de desculpas para não se cuidar e os anos se apoderaram da
pouca beleza que tinha, sem que ela percebesse. Dessa vez, nem fora preciso
colocar os óculos de grau para que a realidade desabasse sobre ela. Velha e
feia. Mal cuidada, gorda, desajeitada.
Nos últimos
anos vivera pelos outros, cuidara da família inteira, cozinhara banquetes,
recebera pouco reconhecimento e alguns elogios. Agora se dava conta de que os
elogios já não eram para a sua pessoa e sim para seus pratos, sua dedicação,
suas habilidades.
Como levara
tanto tempo para se dar conta de sua derrocada como mulher? Desde o momento em que
começara a evitar as fotos, já era um prenúncio da decadência que hoje lhe fora
revelada.
Ele tinha sido
seu grande amor! O mais bonito, o mais bem sucedido, o mais isso e aquilo, o
perfeito! Conhecera-o adolescente e tivera com ele uma relação forte e fugaz
por mais de quarenta anos. Nunca fora “oficialmente” nada para ele, mas jamais
se perderam de vista e o amor permanecia lá, “num estojo de veludo”, como ele
lhe dissera tantas vezes. Dele ouvira os elogios mais doces e recebera os
maiores carinhos. Nos momentos de maior intimidade, ele afirmava que o amor só
duraria para sempre se continuasse livre da rotina sufocante do casamento e foi
desse jeito que se mantiveram unidos, mesmo de longe, sofrendo a ação do tempo
e da distância, no entanto sem cair no esquecimento. Ainda segundo ele, a
rotina, as coisas que ocupavam o dia-a-dia dos mortais comuns não deveriam
influir naquele amor primordial.
Ela aprendera
com o neto a usar o computador e a encontrar amigos e amores no mundo virtual e
nas redes sociais. Logo descobriu o perfil de seu grande amor numa dessas redes
e sempre visitava a página dele, austera, discreta, com pouquíssimas fotos e
referências pessoais. Daquele jeito de ser dele.
Nessa tarde,
sentou-se para ver as fotos do casamento do filho de uma colega de trabalho, no
estilo hippie, tão diferente dos seus filhos, que casaram com pompa,
circunstância e rios de dinheiro desperdiçado, uma vez que mal acabava a
lua-de-mel e o sorriso deles já se tinha apagado, talvez para sempre.
Seguindo as
festas e as fotos dos conhecidos, desembocou numa imagem que mudou
completamente o curso da sua vidinha medíocre. Lá estava ele, ao lado de uma
bela mulher mais jovem, com carrões, sorrisos, lugares românticos, e
declarações de felicidade. Procurou mil defeitos na tal fulana e só conseguiu comprovar
sua elegância e beleza. Era o fim. Não que ele nunca tivesse tido outras
mulheres, mas eram todas inferiores a ela, mais velhas, mais gordas, mais
ranzinzas. Agora não. Dessa vez ela fora covardemente substituída por alguém
muito melhor e isso era desesperador. Além disso, a moça loira, de olhos claros
e longos cabelos, portava um cigarro entre os dedos, que certamente lhe ajudava
a manter a elegância. Ele também fumava, portanto, o cheiro não devia lhe
incomodar. Pior para ela, que engordara tanto ao parar de fumar que até anulara
a vantagem do seu perfume e dos dentes brancos.
O sentimento
que a invadiu instantaneamente foi de luto. Uma palavra não lhe saía da cabeça:
“amada”. A mulher não dizia às amigas que o amava, mas que estava sendo “amada”
como nunca!
Acabara de perder a tramontana e sua cabeça
girava como um peão, sem saber o que fazer, que rumo tomar, ou o que esperar da
vida. Foi quando decidiu ter um encontro sem disfarces com o espelho e suas
últimas esperanças caíram por terra.
A foto da
mulher sorridente e enlevada, fotografada pelo homem a quem amara durante toda
a vida não lhe saía da cabeça. Encheu um copo de uísque, cowboy como ele
apreciava, e dessa vez nem fez caretas, pois não sentia o sabor. O álcool
aqueceu o sangue e permitiu às lágrimas aflorarem aos olhos, geladas, contidas,
antecipando a vingança que certamente iria acontecer.
Trair o marido,
ou a esposa, não é nada diante da traição primordial e visceral do amor. Não se
pode trair o amor! É a negação, em sua forma mais ampla, da humanidade do
homem. Ele existe, é gente, porque ama. E esse sentimento não deve ser
atraiçoado!
Mesmo sem ter
havido um acordo, ela nunca o procurara: era sempre ele quem tomava a
iniciativa, ainda que se passassem anos, como agora.
Só que, desta
vez, ela queria ver com seus próprios olhos, constatar “in loco” aquela efusiva
felicidade alardeada pela outra nas redes sociais.
E foi.
Há tempos não
pegava a estrada sozinha, entretanto, este não era um assunto para se levar
acompanhantes.
Chegou à noitinha,
a tempo de vê-lo sair, lindo e bem vestido como sempre, acompanhado da loira
saltitante das fotos.
“- Parece que
as rivais das morenas são sempre loiras!”, pensou consigo mesma.
Seguiu-os e
esperou pacientemente que jantassem, dançassem e resolvessem ir embora. Não
sabe quanto tempo se passou. Seu coração estava sossegado demais. O sangue
fluía lentamente nas veias e as mãos descansavam firmes no volante.
Chegara a hora.
Enquanto ele
esperava o manobrista trazer seu modelo de último tipo, ela desceu, pegou a bolsa e até colocou o
alarme no próprio carro.
Seus passos
firmes dirigiam-se ao casal na beira da calçada, quando ouviu o ronco potente
do motor, a freada, os gritos e... lá estava seu grande amor estendido no
asfalto.
Correu.
Nem sabe como
conseguiu, mas correu.
Jogou-se
pesadamente no chão ao seu lado e segurou suas mãos frias. Nem por um instante
temeu não ser reconhecida, apesar dos mais de dez anos de mudanças físicas para
pior.
Ele dirigiu a
ela um olhar vidrado, tentou esboçar um meio sorriso e sussurrou:
- Lua...
A loira
indignou-se:
- Então é esta
a “lua” que você finge procurar no céu, como um astronauta? Ou que invoca
tantas vezes durante o sono? É esta?!
As mãos
firmemente entrelaçadas aproximavam as almas, que já se preparavam para sair em
outras viagens.
Ela, lívida,
ainda teve tempo de murmurar:
- E ele... ele
é o meu Sol!
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