terça-feira, 14 de abril de 2015

E MAIS UM ANO PASSA...




                       Sabe aqueles dias em que a gente acorda com uma música na cabeça e nem sabe de onde ela veio, ou porque chegou?
                       Pois hoje amanheci cantarolando: “E mais um ano passa/ a Deus mil graças dai...”.
                       Esta música era cantada nos aniversários da minha avó, pelas suas amigas da Igreja Metodista. Junto com ela me veio à lembrança as taças de Rei Alberto enchendo a geladeira, aquele doce em camadas de “comer rezando”, o manjar branco coroado de ameixas em calda, os doces caseiros, os pastéis de forno, as cucas e os refrescos. Tudo feito pela aniversariante, devidamente assessorada pelas empregadas da casa.
                       Minha avó era muito religiosa, tinha muita devoção pela Virgem Maria e costumes rígidos, seguidos à risca, de acordo com a Santa Madre Igreja Católica. Filha de alemães pelo lado materno, sempre havia algum membro da família que era protestante, ou metodista. Quando conheceu e se apaixonou por meu avô, teve o dissabor de sabê-lo ateu; então, mesmo com o coração despedaçado, desmanchou o noivado e se recusou a casar sem uma bênção religiosa.  O amor falou mais alto e ele cedeu (os homens sempre acabam cedendo), concordou em casar na igreja, mas não na católica, pois não gostava de padres, teria que ser na metodista. Assim, enquanto meu avô viveu, eles foram metodistas, frequentaram a igreja regularmente e fizeram grandes amizades por lá. Depois que ele morreu, aos poucos, ela foi retornando aos seus santos, às suas missas e, sobretudo, à sua Virgem.
                       Companheirinha da minha avó desde sempre, assim como hoje minha neta Bruna é minha, frequentei a Escola Dominical, aprendi hinos e lições pra vida  toda, toquei órgão nas celebrações natalinas e, no caminho para a Igreja, que ficava a uns oito quarteirões da nossa casa e onde íamos sempre a pé, ela de sapatos de salto inclusive, todo mundo dizia que éramos muito parecidas. Minha avó ficava toda orgulhosa e me vestia sempre com lindos vestidos feitos sob medida pela dona Mosinha. A lavadeira da família costumava contar que, quando estendia meus vestidos para secar, eles faziam o maior sucesso no seu bairro.
                       Minha avó era uma mulher sólida, nem gorda, nem magra, de carnes firmes e postura ereta. Única filha que puxou a cor trigueira do pai, enquanto as demais eram loiras de olhos claros como a mãe. A energia do caráter, entretanto, era bem alemã. E seu grande pesar eram os cabelos crespos, que eu também herdei, e a pele mais morena. Em contrapartida, herdou do pai também a inteligência, a vivacidade e, mesmo tendo frequentado pouco a escola, lá adiante, junto com os netos, estudou em casa naqueles módulos por correspondência e aprendeu muita coisa. Eu corrigia suas lições antes dela reenviá-las e percebia seu progresso a cada mês.
                       Muito habilidosa, fazia crochê e tricô com esmero, desmanchando tudo se não gostava de um pontinho e entregando sempre uma peça irretocável. Fui a muitos desfiles com as suas criações, fazendo sempre bastante sucesso e recebendo elogios.
                       Na cozinha era insuperável, desde o pão caseiro até os doces de tacho feitos no fogo de chão. De suas mãos fortes de pianista – sim, ela tocava piano divinamente – saíam delícias incomparáveis, parecendo receitas portuguesas, sempre com muitos ovos das galinhas do pátio.
                       Nosso pomar era de dar água na boca: laranjas de quatro tipos, limão, caqui, pera, pêssego, figo, ameixa, bergamota e uma horta com legumes e verduras variados. O quintal enorme, o sol abundante, os muros prontos para serem pulados, a criançada, as empregadas estendendo roupa, os cães no pátio, o gato no sol, enfim, era como todas as crianças deveriam ter a chance de viver sua infância, ao invés de confinados em apartamentos e janelas gradeadas, gastando seus olhinhos diante de um aparelho de TV, ou em telas minúsculas de tablets e celulares.
                      Minha avó era a massagista e curandeira da família. Sempre encontrava o ponto certo da dor com seus dedos espertos inundados no Iodex. Pra tudo tinha um chá ou uma mezinha e até hoje, quando sinto algum mal estar, meu primeiro impulso seria o de recorrer à ela. Minha mãe conta que meu avô, certa feita, confeccionou para ela um diploma de médica, escarnecendo sua petulância em contradizer os médicos.
                    Vó Odith foi uma mãe onipresente para mim. Com ela aprendi coisas que os livros não trazem e que me foram sempre muito úteis. Pouco afeita a beijos e abraços – o oposto da minha mãe – estendia sobre nós um manto protetor e perto dela nos sentíamos amados e seguros.
                   Viveu 96 anos comendo de tudo, lúcida, autoritária, sem vício algum a não ser sua Bíblia e suas orações.
                   Deixou muita saudade, mas a certeza de que ainda vive em nós, como nessa musiquinha que hoje me acordou;
                  “E mais um ano passa
                   A Deus mil graças daí...”.




Um comentário:

Ana Luiza Carivali disse...

Este texto me remeteu à infância em que tive o privilégio de conviver com minhas avós materna e paterna. Era tudo tão bom que acreditava que as pessoas poderiam viver sempre.A minha avó materna,e a que convivi até minha filha ter os três filhos,foi de uma bênção pois viveu ,com saúde e lúcida até os 103 anos.Somos poucas ,porém as de historias belas vividas em uma infância dourada.