quarta-feira, 11 de junho de 2014

TRIBUTO A GABO



CEM ANOS DE SOLIDÃO
(retirado do discurso de Gabriel García Márquez para o Prêmio Nobel)

                       "No século passado, a missão alemã encarregada de estudar a construção de uma estrada de ferro interoceânica no istmo do Panamá concluiu que o projeto era viável, desde que trilhos não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região, e sim de ouro."

                       "Há onze anos, um dos poetas insignes do nosso tempo, o chileno Pablo Neruda, iluminou este espaço com sua palavra. Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde então, com mais ímpeto que nunca, as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda."

                       "Eu me atrevo a pensar que é esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão."

                         "E ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios, nem as pestes, nem a fome, nem os cataclismos, nem mesmo as guerras eternas através dos séculos e séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e se acelera: a cada ano há 74 milhões de nascimentos a mais que mortes, uma quantidade de novos vivos suficiente para aumentar sete vezes, a cada ano, a população de Nova York. A maioria deles nasce nos países com menos recursos, e entre eles, é claro, os da América Latina. Enquanto isso, os países mais prósperos conseguiram acumular um poder de destruição suficiente para aniquilar cem vezes não apenas todos os seres humanos que existiram até hoje, mas a totalidade de seres vivos que passaram por este planeta de infortúnios."

                           "Agradeço à Academia de Letras da Suécia por me haver distinguido com um prêmio que me coloca junto a muitos dos que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrante cotidiano deste delírio sem remédio que é o ofício de escrever."

                            "Quero crer, amigos, que esta é, uma vez mais, uma homenagem que é rendida à poesia. À poesia, por cuja virtude o inventário assustador das naus que o velho Homero enumerou em sua Ilíada está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua presteza intemporal e alucinada. À poesia, que retém, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. À poesia, que com tão milagrosa totalidade resgata nossa América nas Alturas de Macchu Picchu, de Pablo Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenar nossos melhores sonhos sem saída. À poesia, enfim, a essa energia secreta da vida cotidiana, que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.(...)
Entendo que o prêmio que acabo de receber, com toda humildade, é a consoladora revelação de que meu intento não foi em vão.
Muito obrigado."


Introdução de Eric Nepomuceno ao livro Cem Anos de Solidão
                               "A verdade é que ninguém - nem o próprio Gabriel García Márquez - parece capaz de lembrar o dia, a semana ou o mês em que foi escrita a primeira frase de "Cem anos de solidão". Tudo o que se sabe é que foi numa terça-feira de 1965. E que o mais provável é que tenha acontecido entre o final de junho e o começo de agosto.
É certo, porém que aconteceu na Cidade do México,na rua Loma, número 19, em San Angel Inn, um bairro de classe média que na época ainda era relativamente novo. A casa de tijolos aparentes tinha janelões que se abriam para terrenos descampados e mostravam, muito ao longe, o perfil da serra. Havia um jardim gramado na frente e um pequeno quintal com dois freixos - árvores frondosas e de madeira resistente, como seriam resistentes o autor e principalmente sua mulher, Mercedes, ao longo dos intensos e alucinados meses consumidos até que o livro ficasse pronto."

                                "Entre roteiros, argumentos e textos publicitários, ganhava um dinheiro mais do que razoável. Tinha se mudado com a família para um bairro próspero, morava numa casa confortável e ampla. Frequentava bons lugares, pertencia a círculos importantes da vida cultural mexicana, era dono de um boa coleção de amigos.
Mas não estava feliz. Nos últimos cinco anos, ou seja, desde sua agitada temporada como correspondente da agência cubana Prensa Latina em Nova York, não havia escrito um conto, não havia começado nenhum romance, nem voltara, para valer, a algum projeto abandonado."

                                 "Foi quando aconteceu a história, tantas vezes contada e repetida, de uma viagem de fim de semana com a família Até Acapulco. Mal tinham saído da Cidade do México quando, de repente, ele manobrou bruscamente o Opel branco e voltou. É que, num relâmpago, um livro inteiro, o tão esperado, apareceu. No dia seguinte começou a escrever "Cem anos de solidão".

                                 "Na verdade, as coisas não ocorreram exatamente assim. Ele teve, sim, o relâmpago do livro enquanto dirigia. Mas passou o fim de semana em Acapulco, dando voltas, ansioso, totalmente embebido pelo livro, e só na manhã de uma incerta terça-feira, já de regresso à Cidade do México, sentou-se para começar a escrever."

                                  "A primeira frase veio inteira, e ele conta que ao terminá-la se perguntou: " E agora, o que virá depois?" O que veio foi um manancial só, jorrando sem cessar."
Introdução de Eric Nepomuceno ao livro Cem Anos de Solidão

                                   Nota: a primeira frase do livro é:
                                  "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo."

                                   "Ainda assim, não começou a trabalhar como pretendia. Havia alguns compromissos e encomendas pendentes, e durante várias semanas García Márquez oscilou entre a ávida necessidade de mergulhar no livro e a obrigação de cumprir tarefas que, de repente, se tornaram insuportáveis. Até que decidiu se isolar do mundo. A partir de então, trabalhou sem tréguas seis horas por dia, sete dias por semana."

                                  "Ele não voltaria à vida cotidiana, prática, real, durante os seis meses em que planejava escrever o livro. Refugiou-se num canto da sala de jantar, separado do resto da casa por uma divisória de madeira. Na porta, colocou uma tabuleta de humor caribenho:"La Cueva de la Mafia". Lá dentro havia uma estante com alguns livros, vários dicionários, um globo terrestre, a mesa de madeira coma Olivetti, dois quadros de gosto mais do que duvidoso, e sempre, ao alcance da mão, uma pilha de 500 folhas de papel de ofício. Aferrou-se a um velho hábito, que se tornaria obsessão: considerava, e considera, que um erro de digitação é um erro de estilo. Jamais corrigia: arrancava a folha e começava tudo de novo. Consumiu toneladas de papel. A primeira versão de "Cem anos de solidão" tinha o equivalente a pouco mais de duas daquelas pilhas, ou seja, umas 1.200 páginas datilografadas de forma impecável - e depois cobertas de rabiscos, correções, dúvidas, alterações, num bordado quase indecifrável para o próprio autor. Após semanas de cortes e recortes, o livro ficou menor: 590 páginas datilografadas em espaço duplo."

                                 "Acontece que os tais seis meses viraram catorze. No meio do caminho o dinheiro acabou, o Opel foi primeiro penhorado, e depois vendido, e penhoradas foram as joias de Mercedes e vários utensílios domésticos, a televisão,o rádio. Amigos emprestaram dinheiro, e quando finalmente o livro acabou García Márquez e Mercedes deviam nove meses de aluguel, quatro meses de açougue, sabe-se lá quantos meses de quitanda e padaria, e não tinham mais nada para empenhar ou vender."

                                  "O golpe final veio na hora de despachar os originais para Buenos Aires, onde a poderosa editora Sudamericana esperava por eles. O funcionário do correio pesou o pacote, e disse: "São 82 pesos". Mercedes contou notas e moedas, e disse ao marido: "Só temos 53. Os dois dividiram o pacote pela metade e despacharam. Era uma sexta-feira, teriam até a segunda para tentar descobrir de onde tirariam o dinheiro para mandar a outra metade."

                                 "Quando enfim conseguiram empenhar o secador de cabelos de Mercedes, o aquecedor elétrico da "Cueva de la Mafia" e uma batedeira de bolo que tinham ganho como presente de casamento, mandaram o que faltava. E só então perceberam que no pacote despachado antes estava, na realidade, a segunda parte do livro. Quer dizer: o editor recebeu primeiro a parte final. Pouco depois, o mesmo correio trouxe o cheque de adiantamento sobre direitos autorais do livro.
Com esse dinheiro o aluguel de quase um ano foi pago e a vida recomeçou, à procura do ritmo de antes."
"Cem anos de solidão" foi lançado no dia 20 de junho de 1967, numa edição inicial de dez mil exemplares. Quando soube da tiragem, García Márquez escreveu, preocupado, ao editor Paco Porrúa, dizendo estar temeroso de ser o responsável por um encalhe de grandes proporções."

                                    "Em três anos foram 600 mil exemplares em castelhano, e em oito, as vendas chegaram a dois milhões. Em 1982, quando García Márquez foi contemplado com prêmio Nobel de literatura, só em castelhano, 25 milhões de exemplares de "Cem anos de solidão" tinham sido vendidos, sem contar, é claro, as edições piratas. E quando seu autor celebrou 80 anos de vida, em março de 2007, as vendas chegavam a 50 milhões de exemplares em 36 idiomas. Ou seja: os leitores de "Cem anos de solidão" poderiam formar um dos vinte países mais povoados do mundo."

                                   "Alguns dos amigos de antes ficaram pelo caminho, apesar de todo seu empenho para que tudo permanecesse igual ao que era, ou quase. Os que se mantiveram, porém, continuam intocados e intocáveis. "Compartilhamos as mesmas nostalgias", diz ele para justificar o elo que os une, e que considera indestrutível."

                                  "No começo de 2003, Mercedes fez uma conta que dá bem a dimensão do grau de solicitação e de assédio a que García Márquez é submetido: ao longo de um ano, foram 115 convites para eventos que iam de feiras de livros a conferências e homenagens, 150 pedidos de entrevistas, 28 propostas para entrevistas filmadas - POR SEMANA."

                                  "Lá pelas tantas, o autor de um dos livros mais celebrados de todos os tempos deixa escapar que sente um certo rancor por causa de "Cem anos de solidão":
- Tenho, sim, rancor. Esse livro quase destroçou a minha vida. Depois de publicado, nada foi como antes.
E esclareceu:
- A fama perturba o sentido da realidade, talvez quase tanto como o poder. E além do mais, é uma ameaça constante à vida privada. Infelizmente, ninguém acredita, até padecer deste calvário."

                                  "Esse caribenho continua sendo, enfim, o tímido sem remédio que se escuda do mundo atrás de aparentes véus de diva distante, mas continua, em algum desvão da alma, guardando a infância na casa do avô paterno, o coronel Nicolas Márquez, uma casa povoada por fantasmas.
Também disso lembro bem: quando Mercedes, por alguma razão, viajava sozinha, ele ia dormir num hotel, com uma explicação surpreendente e singela: "Em todas as minhas casas há fantasmas."
A única proteção era e continua sendo a presença de Mercedes. Aliás, contra todos os fantasmas e medos da vida."

                                  "Jamais perdeu o humor que disfarça a verdade contida numa frase que um de seus personagens, o sábio catalão de "Cem anos de solidão", escreveu num carta angustiada, advertindo quatro jovens amigos de que em qualquer lugar que estivessem deveriam recordar sempre que "o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável, e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera."

                                  Agora um pequeno trecho do livro, para que vocês possam realmente conhecer (perdoem os que já conhecem) o verdadeiro estilo do escritor:

                                " Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a própria língua, exemplares formosos de pele oleosa e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com seus papagaios pintados de todas as cores que recitavam romanças, e a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som da pandeireta, e o mico amestrado que adivinhava o pensamento, e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer a más lembranças, e o emplastro para enganar o tempo, e um milhar de invenções a mais, tão engenhosas e insólitas que José Arcádio Buendía bem que gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas elas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos em suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária." 

"Cem anos de solidão"
Gabriel García Márquez


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