Ela
nasceu há noventa e nove anos, numa cidade do interior gaúcho. Foi a primeira
filha do casal, depois vieram dois irmãos, sendo que uma morreu ainda
criança, vítima de uma daquelas doenças
infantis que eram incuráveis antes dos antibióticos e da penicilina. Criou-se, portanto, na companhia de um único
irmão.
Conceição era mimadíssima pelo pai e
não tanto pela mãe, que se frustrava com as discordâncias entre elas, em
relação a quase tudo. A mãe era prendada, quituteira, vaidosa, exigente e ela
só gostava mesmo era de brincar de bonecas e de ler. Declamava bem, escrevia
muito bem, era brilhante na escola, vivia empetecada pela mãe, mas não curtia
muito aquelas modas, aqueles enfeites, aquelas, segundo ela, futilidades. A mãe
era pianista e ela achava uma tortura aquelas aulas de piano com um professor
que furava seus dedos com a ponta fina do lápis quando ela errava.
Com onze anos seu irmão foi para um
colégio interno na capital, para construir seu futuro numa grande escola de
Direito. E ela ficou como filha única, sempre entendida e desculpada pelo pai e
cada vez mais diferente da mãe, que a amava, sem sombra de dúvida, mas não
conseguia moldá-la do seu jeito.
Baixa como a maioria da sua
geração, Conceição não era gorda nem magra, tinha a pele clara e cabelos finos
aloirados, emoldurando grandes olhos negros. Era uma jovem interessante,
educada, culta e extremamente simpática. Apaixonou-se por um aviador doze anos
mais velho e viveu com ele mais de cinquenta anos num casamento de verdade, com
muito respeito, muito beijo na boca e muita cumplicidade. Ele já tinha uma
filha que se somou aos três filhos do casal. Mãe amorosa, exigente nos estudos,
confidente, amiga, Conceição era professora formada e trabalhava numa grande
escola como Secretária, num tempo em que bem poucas mulheres trabalhavam e ela
sequer tinha necessidade do salário, baixo como todos dessa profissão. Seu
marido, assim como seu pai, valorizava muito o talento das mulheres, admirava
as que iam além daquele papel destinado a elas nas famílias patriarcais. Sempre
incentivou as filhas a fazerem o mesmo, jamais negando oportunidades a elas
pelo fato de serem mulheres.
Sua primeira grande dor foi a
perda repentina e precoce do seu pai, seu maior amigo, deixando nela um ferida
aberta pela vida toda e uma saudade imensa.
Anos depois, a dor maior da perda
do filho caçula, num crime inominável, rasgando a família ao meio, dilacerando
pais e irmãos para sempre.
Mais adiante, o marido herói,
fortaleza de toda família, sai de uma cirurgia ocular desastrada cego para
sempre. E ele só sabia ler, voar, consertar tudo que estivesse com defeito,
derreter-se de amor pelas travessuras dos netos. Com pernas saudáveis, ficou
imóvel, dependendo dos outros para tudo e resistiu o quando suportou aquela
vida.
A mãe de Conceição, sem um
diagnóstico preciso, parou de andar. E coube à filha assistir o marido cego, a
mãe semi paralisada e os filhos morando longe, com profissões extenuantes bem distante
dali, dependendo só dos empregados, que cobravam muito, exploravam outro tanto
e nem sempre cumpriam seu papel.
Esta filha que escreve chegou a ter três
empregos para conseguir colocar os filhos na Universidade Federal, pois os
cursinhos eram caros e os cursos que eles desejavam muito concorridos. Com
tanto trabalho, só dispunha das férias e de algum feriado maior para correr de
ônibus os mil quilômetros e dar um auxílio para a mãe.
Primeiro foi a mãe que
partiu, depois o marido e Conceição acabou sozinha naquele casarão enorme, onde
deu a luz e criou todos os filhos e agora ocupava apenas seu quarto, mesmo
assim, tão vazio... Logo veio a tristeza, o excesso de remédios e uma doença
que devia se chamar solidão, ainda que vivesse cercada de empregados e de
amigos da vida toda.
Foi então que a filha que
morava mais distante foi buscá-la para perto, para o mesmo prédio, num
apartamento que o pai, previdente, tinha comprado para o caso de um deles um dia
precisar ficar sob a proteção dessa filha. Não foi fácil para Conceição
deixar sua terra, sua casa e seus amigos... No começo, foi bem difícil. Mas,
aos poucos, a presença da família foi compensando as lacunas e ela voltou a
sorrir com os netos e a se encantar com cada bisneto que nascia.
Ainda hoje só aceita ler
jornais da sua terra, no entanto, reconhece que o clima nesta nova terra que a
acolheu é bem mais ameno e, por alguma razão, não sente mais vontade de rever
sua casa abandonada, quieta, silenciosa, à espera. Gosta de seu novo lar, com
almoços barulhentos e a mesa cheia de crianças.
Ninguém vive 99 anos sem
alguma deficiência. Principalmente quem já passou por tantas coisas na vida.
Aos poucos, Conceição foi perdendo a audição e acabou usando aparelho auditivo,
com o qual se adaptou muito bem. As carótidas um tanto obstruídas, labirintites
recorrentes, tudo contribuiu para uma perda de equilíbrio que ocasionou várias
quedas até ela reconhecer que precisava de um apoio, de um braço para segurar.
Agora, para quem o único e maior prazer era a leitura – até altas madrugadas –
a degeneração macular, com perda parcial de visão e impossibilidade de leitura
foi crucial. Desse baque Conceição quase não se recuperou, pois os livros
vinham compensando muito suas dores e suas saudades. Usou todo o tipo de lupas,
até importadas e leu com elas o quanto conseguiu. Até que teve que desistir,
pois a leitura não fluía mais. Essa falta só foi amenizada com a chegada de uma
jovem leitora que lhe trouxe e lhe traz algumas horas de puro encanto diário,
ouvindo suas leituras preferidas, seus jornais, passagens bíblicas, resumo das
novelas e sempre um romance. A moça é Doutoranda e diz que aprende muito com
ela, pois dona Conceição tem a sabedoria de muitos livros pela vida.
Conceição teria muitos
motivos para ser amarga, triste, revoltada com a vida... mas não é! Tem sempre
um sorriso para todos que se aproximam dela, reza por todos, se interessa por
todos, adora um carinho, um abraço, um beijo, como aquela filha mimada do
Eduardo Vargas e da dona Odith.
Conceição é bisavó da
Amanda, do Lucas, da Bruna, da Alice, da Lívia e da Mariana. É avó apaixonada
do Luciano, do Cristiano, do Rodrigo e do Kadu. Uma “boadrasta” da Yara e dos filhos e netos dela e uma
mãe incomparável do Tibério e minha. Sim, Conceição Vargas Ramos é minha mãe!
Como único comentário sobre
seu aniversário, ela suspira e diz:
- O que será que me reserva
esse novo ano, esses noventa e nove anos?!
10 comentários:
Emocionante seu relato Maria Luiza. Que lucidez a sua em colocar em detalhes, uma vida de, praticamente, 100 anos. Parabéns para dona Conceição e a você, nossos sinceros elogios. Derli e Angelina Paim - São leLeopol RS.
Parabéns Maria Luiza pelo belo texto. Dá um grande beijo na Dona Conceição. Muita saúde e paz a todos. Abraço
Lindo amiga teu relato.Nada será fácil jamais, mas faz parte da caminhada. Privilégio ter dona Conceição lúcida fazendo planos para seus 99 anos.Bjs Eloah
Lindo amiga teu relato.Nada será fácil jamais, mas faz parte da caminhada. Privilégio ter dona Conceição lúcida fazendo planos para seus 99 anos.Bjs Eloah
LINDO
Lindo e emocionante relato!
Parabéns Maria Luiza, pela maneira emocionante que relatas a vida da dona Conceição. Agora faltam alguns dias para o centenário e tenho certeza, será uma grande e merecida comemoração. Que Deus os abençoe e conceda muita saúde a ela. Bjos
Que linda homenagem , texto maravilhoso! Parabéns, pra essa linda, que tive o prazer, apesar do curto espaço, de conviver, pois meu pai trabalhou com Dr. Eduardo.Beijos para as duas!!!
Muito lindo, uma declaração do amor mais puro, fiquei emocionada com seu texto, um grande abraço minha amiga .
Cada vez mais apaixonada por ela! Parabéns pelo texto e pela mãe.
Postar um comentário