Hoje vou postar um texto que não é da minha autoria, mas que tem um significado muito importante para mim, que sou mãe da minha mãe e para os meus filhos, que já começam a ser meus pais.
Por Ana Lúcia Gosling
Nascemos
filhos. E esperamos ser filhos para sempre. Mimados, educados, amados. Que
nossos pais invistam doses cavalares de amor em todo nosso caminho pela vida.
Que, uando a vida doer, haja um colo materno. Que quando a vida angustiar,
encontremos neles um conselho sábio. E, quando isso nos falta, há sempre uma
lacuna, um sentimento estranho de sermos exceção. Mesmo adultos, esperamos
reconhecer nossa meninice nos olhos dos nossos pais. Desejamos, intimamente,
atenções miúdas, como a comida favorita no dia do aniversário ou a camiseta do
time de futebol se estamos na casa deles.
Não
estamos prontos para trocar de lugar nesta relação.
É difícil
aceitar que nossos pais envelheçam. Entender que as pequenas limitações que
começam a apresentar não é preguiça nem desdém. Que não é porque se esqueceram
de dar o recado que não se importam com a nossa urgência. Que pedem para
repetirmos a mesma frase porque não escutam mais tão bem – e às vezes, não está
surdo o ouvido mas distraído o cérebro. Demora até aceitarmos que não são mais
os mesmos – que dirá “super-heróis”? Não podemos dividir toda a nossa angústia
e todos os nossos problemas porque, para eles, as proporções são ainda maiores
e aí tudo se desregula: o ritmo cardíaco, a pressão, a taxa glicêmica, o
equilíbrio emocional.
Vamos
ficando um pouco cerimoniosos por amor. Tentando poupar-lhes do que é evitável.
Então, sem querer, começamos a inverter os papéis de proteção. Passamos a
tentar resguardar nossos pais dos abalos do mundo. Dizemos que estamos bem,
apesar da crise. Amenizamos o diagnóstico do pediatra para a infecção do neto
parecer mais branda. Escondemos as incompreensões do casamento para parecer que
construímos uma família eterna. Filtramos a angústia que pode ser passageira ao
invés de dividir qualquer problema. Não precisam preocupar-se: estaremos bem no
final do dia e no final das nossas vidas.
Mas,
enquanto mudamos esses pequenos detalhes na nossa relação, ficamos um pouco
órfãos. Mantemos os olhos abertos nas noites insones sem poder correr chorando
para a cama dos pais. Escondemos deles o medo de perder o emprego, o cônjuge ou
a casa para que não sofram sem necessidade e, aí, estamos sós nessa espera; não
há colo nem bala nem cafuné para consolar-nos.
Quanto
mais eles perdem memória, vigor, audição, mais sozinhos nos sentimos, sem
compreender por que o inevitável aconteceu. Pode até surgir alguma revolta
interior por esperar deles que reagissem ao envelhecimento do corpo, que
lutassem mais a favor de si, sem percebermos, na nossa própria desorientação,
que eles não têm a mesma consciência que nós, não têm como impedir a passagem
do tempo ou que possuem, simplesmente, o direito de sentirem-se cansados.
Então
pode chegar o dia em que nossos pais se transformem, de fato, em nossos filhos.
Que precisemos lembrá-los de comer, de tomar o remédio ou de pagar uma conta.
Que seja necessário conduzi-los nas ruas ou dar-lhes as mãos para que não caiam
nas escadas. Que tenhamos que prepará-los e colocá-los na cama. Talvez até
alimentá-los, levando o talher a sua boca.
E
eles serão filhos piores porque lembrarão que são seus pais. Reagirão as suas
primeiras investidas porque sabem que, no fundo, você acha que lhes deve
obediência. Enfraquecerão seus primeiros argumentos e tentarão provar que ainda
podem ser independentes, mesmo quando esse momento tiver passado, porque é
difícil imaginarem-se sem o controle total das próprias rotinas. Mas cederão
paulatinamente, quando a força física ou mental reduzir-se e puderem encontrar
no seu amor por eles o equilíbrio para todas as mudanças que os assustam.
Não
será fácil para você. Não é a lógica da vida. Mesmo que você seja pai, ninguém
o preparou para ser pai dos seus pais. E se você não o é, terá que aprender as
nuances desse papel para proteger aqueles que ama.
Mas,
se puder, sorria diante dos comentários senis ou cante enquanto estiverem
comendo juntos. Ouça aquela história contada tantas vezes como se fosse a
primeira e faça perguntas como se tudo fosse inédito. E beije-os na testa com
toda a ternura possível, como quando se coloca uma criança na cama,
prometendo-lhe que, ao abrir os olhos na manhã seguinte, o mundo ainda estará
lá, como antes, intocável, para ela brincar.
Porque se
você chegou até aqui ao lado dos seus pais, com a porta aberta para interferir
em suas vidas, foi porque tiveram um longo percurso de companheirismo. E
propor-se a viver esse momento com toda a intensidade só demonstrará o quanto é
grande a sua capacidade de amar e de retribuir o amor que a vida lhe ofereceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário