domingo, 23 de dezembro de 2018

TRIBUTO AO DADINHO


Achei que nunca conseguiria escrever sobre isso. Porque doía só de pensar. Mas ele não merece ser esquecido, ou desconhecido das novas gerações da família. Então, mesmo que precise usar sangue e lágrimas para colocar a dor em palavras, pretendo relatar uma história triste demais de um menino amado demais e inesquecível para nós e para seus amigos.
A data escolhida é 23 de dezembro, porque foi o dia em que ele nasceu e encheu nossa família de encanto. Eu tinha apenas 4 anos, mas lembro perfeitamente de tudo e do quanto eu o amei e protegi, como se meu filho fosse.
Seu nome era Eduardo, em homenagem ao avô materno. Clarinho, de cabelos encaracolados, um olhar vivo e doce, muito esperto e falante, obteve a maior pontuação dos irmãos nos testes de QI da escola. Alfabetizou-se em tempo recorde, não era de brigas, gostava mesmo era de desenhar e de representar.
 Na garagem de casa montou um palco e ali encenava suas peças nas noites de verão. Colocava bancos e cadeiras no largo e longo corredor da entrada da garagem para os vizinhos assistirem, montava o cenário, escrevia as peças, criava os figurinos e representava. Até seu gato participava do elenco.
Nas festas da escola sempre se destacava, tirava notas excelentes, era bom aluno, respeitoso, amigo e os professores achavam que ele tinha uma inteligência acima da média.
Eu cuidava dele em casa, na rua, na escola, porque nos dávamos muito bem e ele era quase um filho para mim.
Assim Dadinho foi crescendo...
E cercando-se de novos amigos, com novos hábitos. Meninos da sociedade, filhos de famílias conhecidas, naqueles anos 70 bem complicados para a juventude.
De repente, ele apareceu fumando, como a maioria dos jovens daquela época.
O irmão mais velho foi estudar na capital, a irmã (eu) casou e saiu de casa e Dadinho ficou com os pais e a avó materna no casarão da família. Um pai bem mais velho que não podia sequer imaginar os perigos que esses meninos estavam correndo, quando começaram a aparecer as drogas e as famílias não tinham ideia de como prevenir e aconselhar seus filhos.
No dia em que completava 15 anos, Dadinho não chegava para a festa. Tinha ido nadar no Tênis Clube à tarde, os amigos da família começavam a chegar e nada do aniversariante. De repente ele chegou, mas chegou diferente.  Agitado, esquisito, a ponto de meus pais chamarem o médico da família para examiná-lo. E assim, no dia dos seus quinze anos, meus pais receberam a primeira bomba de muitas outras – Dadinho tinha usado drogas.
Daí em diante foi um cuidar, proibir, fiscalizar, aconselhar, consultar, levar a médico e psicólogos até na capital e a paz estava definitivamente extinta da família. Meu pai levantava várias vezes durante a noite para ver se ele não estava descoberto no inverno, dava conselho e, de outro lado, os tais amigos chegavam a levar drogas e sprays escondido para ele, quando ele não saía.
Aqueles três velhos toleraram rocks no volume máximo, cabelos compridos, roupas esquisitas e até reuniões dançantes com luz negra na ampla varanda – coisa inadmissível para a criação conservadora que tivemos. Tudo para ver se Dadinho se curava.
Meu filho mais velho tinha um ano e era com ele que Dadinho mais interagia, corria no pátio, deixava mexer nos seus discos, permitia que entrasse no seu quarto todo decorado com motivos de bandas de rock e dos Secos&Molhados. Luciano era louco por ele, se agarrava nos seus cabelos crespos para não cair e rodopiava com o “titio” pelos canteiros da praça quando o encontrávamos. Para fazê-lo estudar para as provas finais, quando seus resultados na escola começaram a diminuir, sua condição era que eu fizesse as perguntas enquanto ele corria com o sobrinho no carrinho em volta dos canteiros do nosso jardim. E o guri adorava!
Nos bailes e carnavais Dadinho era o último a chegar em casa e caminhava no telhado, carregava a lenha de um pátio para o outro, enfim, não tinha sono e uma excitação que hoje sabemos que as drogas dão.
Um dia, ele apareceu no meu apartamento pedindo minha máquina fotográfica emprestada, porque queria fazer umas fotos. Ele estava com dezessete anos e sempre fora muito artístico; além disso, continuava sendo o meu mimoso e eu emprestei. Só não podia imaginar que seria a última vez que eu o veria...
Ele vendeu o toca-disco novo, o melhor casaco, pegou apenas uma mochila e sumiu. Disse que iria viajar pelo mundo como mochileiro. O que nós não sabíamos era que seu companheiro seria um traficante argentino, de nome Raúl Fernando Horácio, que tinha sido apresentado a ele por um dos seus novos amigos e companheiros de drogas.
Começou então nosso calvário. O Brasil ficou pequeno de tanta gente a procurá-lo. Polícia, Maçonaria, Lions, Rotary, amigos, parentes, conhecidos (infelizmente ainda não havia redes sociais) e nenhuma notícia do Dadinho. Aliás, a maldade humana é ilimitada e recebemos muitas pistas falsas, gente que jurava tê-lo visto no Nordeste, na Argentina e em muitos outros lugares. E nada.
Soubemos depois que nosso menino só chegou até Porto Alegre, onde moravam nossos dois irmãos mais velhos. Hospedou-se com o traficante num hotelzinho barato da Voluntários da Pátria e no dia seguinte já tinha sido roubado pelo bandido. Sentiu a barra pesada e avisou no hotel que iria embora procurar seus irmãos. O bandido tinha saído, quando chegou e recebeu o recado correu atrás dele, pegou-o por trás e cortou seu pescoço com uma navalha. Ainda roubou a câmera fotográfica que eu havia emprestado e onde talvez tivessem fotos comprometedoras. Chovia muito e ele jogou meu irmão numa vala de uma construção, onde ele acabou morrendo por asfixia mecânica. Foi encontrado pelos operários e levado ao IML como desconhecido.
Enquanto isso, nós o procurávamos desesperados pelo Brasil e pelos países vizinhos. Nenhum dos seus amigos quis fornecer nenhuma pista do bandido, os mesmos amigos que levavam drogas para ele e o apresentaram ao traficante, fugiam de nós na rua.
Em dois dias acabou a aventura pelo mundo de um menino talentoso, engraçado, amoroso, insubstituível e inesquecível.
Como uma das piores histórias da tragédia grega, o encontro com o corpo do Dadinho não poderia ter sido mais trágico. Quase um mês mais tarde,  nosso irmão Tibério, jornalista da Zero Hora na época, foi encarregado de ir ao IML fotografar alguns corpos naquelas gavetas refrigeradas, que seriam enterrados como indigentes caso não aparecesse ninguém para identificá-los. Foi ele que encontrou o irmão caçula. Da pior forma possível.
Naquela noite, eu tinha chegado na aula da faculdade de Letras e escrito no quadro, em letras garrafais: “Pau que nasce torto morro torto, eu não sou pau, posso me regenerar.” É uma letra de música e é claro que eu me referia ao meu irmãozinho. Momentos depois recebi a notícia que ele tinha sido encontrado... morto.
Nunca esquecerei meu pai me encontrando de braços para cima e gritando desesperado no meio da rua. Minha mãe estava na minha casa cuidando do meu filho e eu não consigo nem lembrar quem e como deram a notícia para ela. Sei que a vizinha ficou cuidando do Luciano e que a casa dos meus pais começou a encher de gente naquela noite gelada de inverno, num julho de 1974. Lembro que acenderam a lareira e o fogão à lenha, que alguém fez e serviu café, mas não sei se fui eu. Sei que minha mãe e minha tia Ada estavam deitadas na cama dela, chorando muito, tomando remédios e eu deitei no chão num cantinho do quarto e não conseguia respirar direito, achei que ia morrer sufocada, pois o ar não chegava aos meus pulmões. Ninguém se lembrou de me dar um remedinho, pois eu era jovem e apenas irmã, mas a minha dor era de mãe.
Recordo, até hoje indignada, uma amiga da minha mãe dizendo: “Te consola amiga, podia ser pior”. Mas pior como????
Soube que meu irmão mais velho quase chegou desidratado a Alegrete, acompanhando o carro fúnebre desde Porto Alegre. E que meu pai foi esperar na entrada da cidade, no meio da rodovia e disse aos brados: “- Ah, meu filho, voltaste deste jeito”! O caixão estava lacrado e nunca vimos Dadinho morto, a não ser por algumas fotografias da Polícia.
Talvez por isso eu sempre tivesse tido uma esperançazinha lá no fundo de que ele fosse aparecer. Luciano gritava “Titio” para todos os cabeludos que via e eu diversas vezes me enganei com alguns também.
Meus pais pediram que eu desmontasse o quarto dele, tirasse os pôsteres, achando que a dor diminuiria, mas foi em vão. Mudaram de casa, se desfizeram de móveis grandes, ficaram mal acomodados numa casinha alugada e a dor foi junto.
O traficante argentino passou um tempo preso e depois foi solto. Anos depois andava assaltando cofres de hotéis no Rio de Janeiro.
Meu pai branqueou todo o cabelo num mês.
Minha avó quase morreu na noite depois do enterro, passou muito mal.
E eu tive a certeza de que nunca mais seríamos completamente felizes. E não fomos.
Meu marido tinha saído do quartel, onde era Oficial R2 e estava tentando entrar para o Quadro Complementar da Marinha. Tínhamos vendido até o carro e eu engravidei. Sonhei que o Dadinho voltaria para a nossa família num filho meu. A época não era adequada, pois Coutinho passou o ano todo no Rio de Janeiro no Curso Preparatório e eu passei a gravidez sozinha, com um filho de dois anos e os pais chorando dia e noite.
Se Cristiano é ou não a reencarnação do meu irmão eu não tenho certeza, os espíritas afirmam isso, mas eu sou católica e sempre fico na dúvida. O fato é que o nascimento dele trouxe novo alento a uma família devastada. É fato também que ele chorou muito tempo à tardinha, na hora aproximada que o Dadinho morreu. Um choro inconsolável, sem razão e que só foi parando com o tempo. É fato também que ele vivia com problema de garganta, quase operou, e o seu Amâncio, famoso espírita de Alegrete e grande amigo, me mandou uma carta pedindo que eu esperasse até os 7 anos dele, que tudo isso ia passar, que eram resquícios de uma reencarnação prematura. O fato é que esperei e que depois dos 7 anos ele nunca mais teve problema de garganta.
Cristiano tem uma banda de rock, toca guitarra e pinta muito bem. Não tem nenhum vício, é bem teatral, mas faz imitações apenas para o grupo familiar. É um filho e um pai maravilhoso!
No meu filho caçula quis colocar o nome Eduardo, mas minha avó não deixou, dizia que não tinha dado sorte. Então juntei o nome do pai dele e ficou Carlos Eduardo. Para evitar o mesmo apelido, eu o chamei de Kadu logo após o nascimento.
Esta foi a trajetória de um menino que viveu apenas dezessete anos, mas que nunca foi, nem será esquecido por nós.
Eu devia isso a ele.
Não foi fácil escrever, precisei parar muitas vezes e até aumentar o remédio da pressão, mas tirei do peito um cadeado que me prendia  há mais de quarenta anos.
Agora posso esperar o Natal mais leve.
Hoje Dadinho estaria completando 62 anos. Como ele seria? Teria filhos? Netos? Para nós será sempre aquele jovem alto, magro, de cabelos compridos, bolsa de couro no ombro, olhos doces, riso aberto.
Talvez minha total incompetência para criar finais felizes nos meus contos se deva um pouco a esse episódio cruel e marcante da minha vida.
Talvez.




6 comentários:

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

A gente, num caso como este, pensa que não fez o suficiente, que se tivesse agido de uma outra forma, o final teria sido diferente. A gente pensa, mas não é assim: "cada um traz a seu cargo, um destino que lhe guia...".

Nádia Oliveira de Souza disse...

Meu Deus como chorei, como amava o meu Dadinho, queria tanto ele pertinho de mim!!!! Sinto falta até hj, com certeza seria meu companheiro sempre, talvez um amor na minha ou da minha vida!!!! Amooo vc, morreste qdo eu estava estudando e morando longe, sem imaginar o ruim que estava acontecendo contigo, me senti tão culpada por tanto tempo, por não ter notado que precisavas da minha ajuda. Te amo meu irmão !!!!

Izabelle Valladares disse...

Que historia ne? Sempre achamos que nossos entes estão protegidos por todo amor e no entanto, os mais amafos também são vitimas. Uma tristeza sem fim. Lamentavel.

derli baltasar castagna paim disse...

Belo relato e emocionante mensagem às novas gerações. Você foi fiel aos acontecimentos, sem pieguice e vitimismo. Obrigado. Abraço.

Rita Faraco disse...

Foi um acontecimento que chocou e comoveu os alegretenses. Uma morte precoce, triste, muito lamentada e que causou revolta pela violência e covardia. Mas, são os desígnios de Deus, embora seja difícil entendê-los. Só a fé nos ajuda a aceitá-los. Procura lembrar os bons momentos e a alegria do menino travesso e engraçado que, com certeza, está em paz e olhando por todos vocês. Beijo com carinho, querida.

Carlos Abel Blessmann dos Santos (Belinho) disse...

Maria Luiza, boa tarde.
Sou presente nesse acontecimento. Quantas vezes estive alí naquela garagem, quando não jogava botão com o Tibério e a turma, também presenciava as peraltices do Dadinho. O Béio (Tibério), sempre presente no campinho de futebol lá nos fundas da casa, e Dadinho correndo entre nós. São momentos difíceis, difícil de aguentar, difícil de entender. Mas, Baísa, lembras, era assim que ele te chamava, podes crer, ele está lá de cima, olhando por aqueles que tanto significam na família Vargas Ramos. Parabéns pelo escrito acima, são lembranças de alguém que jamais podemos esquecer. Um abraço, que 2019 traga muita fé, muita saúde, e felicidades plenas a tí e tua família.
BELINHO.