sábado, 15 de setembro de 2018

BOM DIA!




Como esse raio de sol ousa penetrar na minha tristeza? Acaso imagina que irei levantar saltitante e dar bom dia a todo mundo, como se nada tivesse acontecido? Quero chuva, raios, trovões, tempestades. Assim os chatos ficam em casa e não vêm conversar abobrinhas sob a minha janela. Odeio essas vozes, esses passos, esses carros passando. Xô todo mundo! Deixem-me em paz!
Novamente a cabeça lateja e sempre pelo mesmo motivo – a desmedida no vinho. Dane-se! Pelo menos fiquei anestesiada nas primeiras duas horas de sono, antes que começasse tudo a desabar outra vez nas minhas lembranças, potencializado, insuportável, massacrante como em todas as noites. Será que só eu entendo a vida como ela realmente é?
Não suporto mais a falsidade que permite às pessoas tolerarem umas às outras. Cansei de elogios mentirosos e tapinhas nas costas, como se eu fosse Matusalém e tivesse todo o tempo do mundo para realizar os sonhos. Mais uma vez fiquei de fora dos dez primeiros classificados e, pior, mais uma vez discordei dos jurados e achei uma porcaria tudo o que li. Assim não dá pra competir, pois é impossível escrever de um jeito que abominamos. É verdade que ainda tenho os francos suíços do último concurso, mas estes serão usados para pagar as novas edições dos meus livros, como sempre ultra elogiados... principalmente se forem doados, ou emprestados.
Seria bom ter um gato bicho para se enrodilhar nos meus pés nessa cama fria. Se não houvesse levado tão a sério as admoestações sobre os perigos dos animais na cama, certamente não estaria tão sozinha. Cubro a cabeça para me livrar desse raio teimoso, que mostra uma fileira de pó e micróbios entre a cama e a janela. Sinto meu cheiro concentrado debaixo das cobertas e lembro-me de outros cheiros, dos feromônios da juventude, da cama partilhada, de suores revigorantes. Melhor transar do que escrever, menos desgastante, menos decepcionante. Mais fácil compreender um fracasso sexual do que um concurso com falsos ganhadores, ou melhor, entender a cabeça de quem elege os vitoriosos. Tanta bobagem... tantos erros, tantas elucubrações insensatas.
Quase todos os grandes escritores morreram inéditos. Não sou petulante a ponto de me considerar um deles, até porque leio muito e sou fã de quase todos. Mas já vi filas imensas em sessões de autógrafos de livros muito ruins. Numa fórmula incompreensível de apenas se mostrar ao público, com bem pouco a dizer. E ainda atropelando todas as regras gramaticais que o autor não conseguiu aprender na escola, à guisa de diferencial.
Hoje não saio dessa cama, pelo menos enquanto durar esse sol debochado, ultrajante. Arrasto-me até o banheiro e engulo duas aspirinas com um gole d’água colocada na mão e que foi insuficiente. Agora tenho um gosto amargo na garganta e a sensação de ter engolido um osso atravessado. Volto a cobrir a cabeça e a aspirar o cheiro do corpo sob os lençóis. Dizem que é bom para enxaqueca.
Com portas e janelas fechadas o ruído da rua fica abafado, mas o ruído das vozes dentro da cabeça aumenta, evocando coisas desagradáveis, problemas, gente chata, compromissos enfadonhos, realidades. Tento meditar, o que nunca consegui fazer direito. As cores se misturam, as vozes se intrometem, as pessoas aparecem onde deveria ficar tudo vazio e esqueço-me de prestar atenção na respiração. Desisto.
Puxo o notebook do tapete ao lado da cama, ajeito nos joelhos e penso: - Claro que eu poderia escrever diferente. Sei criar de várias maneiras, não sei por que teimo em apresentar a que considero melhor. Poderia começar assim, por exemplo:
“Uma borboleta lápis lazuli carnavalizava no canteiro de gerânios espalhando pólen para todo lado e provocando desastrada crise de espirros no jovem imberbe e alérgico, que recém reunira coragem para dar o primeiro beijo na boca da mocinha de boina preta e tranças douradas. Ela olhou com nojo para ele e se afastou quase correndo.”
Ou assim:
“O homem estava de smoking atrás da cadeira e a jovem mãe de vestido longo, com o filho rechonchudo no colo, como se posassem para um retrato da realeza. A altivez contrastava com as olheiras fundas e com a fisionomia pálida e cansada do casal. Só a criança parecia genuinamente saudável.”
Enfim, para satisfazer os julgadores poderia fazer meu texto girar sobre si mesmo, enovelado, abstrato, deliberadamente confuso, ignorando a sequência dos fatos e deixando de lado qualquer verossimilhança.
Mais ou menos assim:
“te peguei! sabia que a arapuca não ia falhar. de dentro da árvore o espírito debochava da sua boca aberta. para que desperdiçar munição em abutres? cedo ou tarde eles caem sozinhos. não adianta ficar mascando chicletes como um ruminante porque sinto o cheiro do seu medo. o espírito confuso dos antepassados sobressaía do tronco da árvore e vaticinava seu infortúnio.” (assim mesmo, só com letras minúsculas, para ficar “moderno”)
Fecho o computador, suspiro com cara de enfado, constato que a dor de cabeça aliviou, como sempre acontece depois de transbordar a alma em letras.
Um breve espreguiçar a caminho do chuveiro. Depois café.
Bom dia!


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