Sempre amei tudo que fosse relacionado a balé! Obviamente,
tenho a maior admiração pelo Bolshoi, a melhor ou uma das melhores companhias
de dança do mundo! Assisto a seus espetáculos em filmes, clipes, na internet,
na TV, onde consigo, porque me encanto com a perfeição de seus bailarinos.
Não sei se por minha influência, tenho duas netas que já
começam a dançar. Uma ainda iniciando, mas já apaixonada pelas sapatilhas e a
outra num nível intermediário, desenvolvendo coreografias mais elaboradas e manifestando
claramente sua inclinação para a dança.
Bruna tem nove anos, faz balé desde um pouco antes dos três
e já faz algum tempo que só fala em chegar aos nove para poder participar da
seleção dos novos bailarinos para a Escola Bolshoi do Brasil, aqui pertinho, em
Joinville. Fomos tratando o assunto como algo distante, só que nesse ano ela
fechou questão e conseguiu que a mãe a inscrevesse. Diante das suas
apresentações, sempre tão perfeita, tão graciosa, tão exata, estávamos receosos
que ela fosse mesmo aprovada e causasse um rebuliço completo na vida da família
e nos trabalhos dos pais, porque, sendo filha única, eles não abririam mão de
acompanhá-la para todos os lugares. A expectativa era de que ela se saísse bem,
demonstrasse toda a graça e correção que nos acostumamos a ver em suas apresentações
e depois os assuntos práticos seriam debatidos e solucionados, desde que ela se
sentisse realizada e feliz.
No mês que antecedeu a seleção, Bruna praticamente dançou os
dias inteiros, por conta própria, criando coreografias, realizando saltos e passos,
enchendo de sonhos e piruetas suas pequenas sapatilhas cor de rosa. Sua
professora de balé e a família sempre tentando colocar um pouco de realidade em
suas fantasias, para que ela não ficasse muito decepcionada caso não fosse uma
das escolhidas. Mas qual o quê! Ela tinha certeza de que conseguiria passar aos
avaliadores toda sua paixão e seu sonho de flutuar na ponta dos pés.
Escolheu os melhores collants, os enfeites do coque, as
sapatilhas da sorte e partiu, na companhia dos pais e dos avós, para o primeiro
desafio da sua vidinha. Cheia de sonhos, olhos brilhando, curiosidade,
ansiedade, deslumbramento diante do prédio imponente, cercado de fotos gigantescas
de seus melhores bailarinos. Difícil dormir na véspera... fácil de acordar
muito cedo, nenhuma reclamação na hora do coque bem puxado, sem nenhum fio de
cabelo solto, costas retas, barriga pra dentro, queixo alto... ela entrou
pisando firme, como um toureiro entra na arena certo da vitória, a ponto de
outras meninas olharem para ela com um misto de admiração e respeito, com a
marca de forte candidata impressa em seus passos firmes e seu olhar decidido.
Sem fome, sem sede, sem vontade de ir ao banheiro nem de puxar conversa, a
pequena enfrentou a fila sem sorriso, sem papo, de olho na porta que a
conduziria para a primeira sala onde os incontáveis testes teriam início.
Aqui abro um parêntese para relatar o que nós vimos do lado
de fora, o que ouvimos, o que presenciamos, porque desde que a pequena entra por
aquela tal porta, não sabemos mais nada dela pelas cinco horas seguintes. Isso não
nos foi avisado, não deram a menor previsão, só apontando o portão por onde eles
sairiam e que os familiares deveriam estar ali, a postos, para receber as
crianças. Sem almoço, portanto, porque os testes duraram das 10h da manhã às
15h para os que foram mais analisados, durante mais tempo. Nesse portão, a torcida
era para que a criança não saísse, uma vez que os mais fracos eram eliminados
rapidamente. Bruna foi das últimas a deixar a escola, embora não tenha recebido
nenhuma avaliação ou classificação por escrito.
Para quem não conhece esse universo das seleções para a Escola
Bolshoi, vou relatar alguns fatos.
O curso completo tem
a duração de oito anos. A seleção para o início do curso abrange crianças de 9
a 12 anos. E é sobre essa apenas que posso me referir, pois a dos maiores é diferente,
parece que eles enviam um vídeo com suas performances para serem pré-selecionados
e depois fazem o teste na escola.
O que poucos sabem
(nós não sabíamos) é que para a seleção dos menores não é preciso que a criança
tenha feito uma aula sequer de balé, não precisa ter colocado uma sapatilha e
nem saiba o nome de nenhuma das posições. Eles procuram apenas uma ANATOMIA adequada a
seu método de ensino, uma massa de modelar que eles possam trabalhar de acordo
com seus objetivos, portanto, a seleção não depende de nenhum esforço ou
talento da criança, mas tão somente das suas características físicas, ósseas e
musculares. Portanto, pode fazer aulas de balé desde a mais tenra idade, se
seus ligamentos não se alongarem como eles desejam, esquece!
A seleção acontece mais ou menos assim. Uma equipe da escola
vai a todas as regiões do Brasil pré-selecionando e depois esses selecionados
se inscrevem para essa etapa decisiva em Joinville. Escolas públicas da cidade também
recebem essa pré-seleção e os pais são convidados a levar os filhos na data
marcada, ainda que jamais tenham chegado perto de uma sapatilha, ou não façam
ideia de como prender os cabelos num coque. Os demais (como no caso da Bruna)
se inscrevem no site da escola, enviando documentos, pagando uma taxa e dando
referências das escolas de balé onde estudou (não sei por que).
De hora em hora filas imensas são formadas, com as crianças
selecionadas para aquele horário. Isso durante dois dias, até sair a primeira
classificação. E os pais plantados diante do portão, sem saber a que horas os
filhos sairão, sem absolutamente nenhuma notícia deles.
O sotaque predominante é o nordestino, porque eles são maioria
absoluta. Depois os nortistas e muitos do centro-oeste também. Raros do Sul e
do Sudeste. Famílias inteiras, até com recém-nascidos, lotam ônibus e viajam
muito tempo para trazer a criança pré-selecionada. Um desfile de modas, cores,
penteados, sacolas, malas, burburinho, poucos bancos para sentar, escadarias
cheias de gente buscando um pouco de descanso para as pernas, marmitas,
merendas, cenas que na nossa imaginação não se realizariam diante de uma escola
de balé, onde nos acostumamos a ver luxo, fantasias, performances
Conversando com várias famílias, me deparei com a
determinação de largar tudo e vir para Joinville acompanhar a filha ou o filho,
caso aprovado, enfrentando o frio a que não estão acostumados, morando mal,
tendo que arranjar algum emprego, enfim, determinados a mudar radicalmente de
vida, crentes de que o filho bailarino iria recompensá-los e até manter a família
com seu futuro. Em resumo, não tinham quase nada a perder e muito a ganhar com
a mudança.
Crianças mal vestidas, com os coques mais esdrúxulos já
vistos, esperando para vestir uma roupa emprestada pela escola e que tinha que
passar de um para outro, mas contando com a única sorte que poderiam ter: a de
ter nascido com ligamentos longos, flexíveis, ossos retos, bem encaixados, que
possibilitassem à escola moldá-los segundo suas necessidades e objetivos.
Cada escola tem o direito de ter suas linhas de ação e
trabalho. Mas tem, também, o dever de divulgá-las com clareza, para que não se
criem falsas expectativas e que nem se formem aquelas filas intermináveis, numa
multidão de todos os naipes, quando o resultado dos tais e famosos testes
poderiam ser divulgados com base numa radiografia, numa tomografia e apenas um
teste de flexibilidade.
Bruna passou por incontáveis provas durante 5h. Foi medida,
pesada, escrutinada em cada ossinho, cada músculo, mas não dançou!
Não pode rodopiar
lindamente, bem ao ritmo de qualquer música como faz muito bem. Nem pode criar
suas coreografias com os passos que aprendeu em vários anos de barra e
sapatilha.
Saiu exausta, com
cara de vitoriosa, já que, segundo ela, recebeu muitos elogios dos avaliadores.
Ela mal conseguia caminhar, morta de fome cansaço e foi carregada no colo pelo
pai até se recompor.
Ela tem noções de flauta e de piano, canta no Coral da
escola há vários anos, faz balé há mais de seis anos, escreve histórias e peças
que ela mesma representa, mas nada disso contou. Talvez sua perna precisasse
levantar mais um pouco, ainda que esteja trabalhando firme nisso. Porque flexibilidade já nasce com a pessoa,
mas os outros talentos precisam ser adquiridos.
E deveriam ser valorizados!
Não foi fácil conformar a Bruna, enxugar suas lágrimas e
soluços, ver a luz dos seus olhinhos se apagarem diante da decepção. Ela não
conseguia acreditar que, pela primeira vez, alguém não tivesse achado que ela
era uma linda bailarina. As palavras não encontravam eco na sua tristeza, não
conformavam seu coraçãozinho choroso e foi preciso muito carinho, muito beijo,
muito abraço para ela voltar a sorrir.
Quando finalmente respiramos aliviados diante da aparente
normalidade, ela lascou:
- No ano que vem a gente tenta de novo!
4 comentários:
Quando mãe sofremos com os filhos, depois avós com os netos porque lutamos para mão vê-los decepcionados.Esquecemos as nossas tantas decepções e sonhos perdidos que fizeram parte da nossa caminhada e que hoje mais sábios sabemos que fizeram parte do nosso aprendizado.Eu aqui acompanhei a batalha da Bruna e torci ,torci.Não deu.Ano que vem retornará com certeza. Persistência é tudo é mais ainda.Bjs.
Muito obrigada minha querida! Tens razão. Esperamos que os sonhos dela mudem para mais possíveis e adequados. Beijo.
Li todo o teu comentário e fiquei surpresa com o quesito seleção. Avaliar um aluno por sua habilidade física,e não precisamente saber noções de ballet é um tipo de avaliação que não compreendo.A partir deste principio sua professora de ballet deve trabalhar mais com seu desenvolvimento de alongar,pois se é o que eles avaliam, tem que ser uma acrobata. Que lea não desanime pois sua idade ainda tem muito chão a percorrer se optar em ser bailarina. Falo isto por que tenho filha formada em ballet e realmente é sacrificio.Boa sorte.
Sim. Parecia mesmo um teste para ginasta, contorcionista. Bruna tem uma flexibilidade normal e tem trabalhado em aprimorá-la. Já consegue um bom spacatto, mas graças aos exercícios. Eles procuram muito mais!
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