segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A SAUDADE MATA A GENTE



                     Saudade de quem vive longe apenas fisicamente tem remédio. Os meios de transporte e de comunicação estão aí pra isso.
                     Saudade de quem já morreu é uma saudade triste, porque acompanhada da impossibilidade de cura. O socorro vem das lembranças, do rastro que a pessoa deixou neste mundo e no qual nos confortamos.
                     Mais difícil é a saudade de nós mesmos, essa sim costuma machucar bastante e as comparações são inevitáveis. Para atiçá-la, basta encararmos estoicamente um álbum de fotografias de anos atrás. Junto à infância dos nossos filhos estamos nós, cheios de vigor, elegantes, enérgicos, com aquele olhar de quem ainda pretende conquistar o mundo e tem mil planos a concretizar.
                      Sempre que precisamos correr, subir escadas, fazer força, levantar peso nos recordamos de uma energia e uma flexibilidade aos pouco extinta.
                      Quando nos preparamos para uma festa, precisamos driblar muitas imperfeições, gastamos mais tempo corrigindo defeitos do que salientando qualidades e o produto final quase nunca nos agrada totalmente.
                     Entramos naquela fase de não termos mais a convicção de que estaremos presentes no casamento e na formatura dos nossos netos e procuramos formas de nos eternizarmos na lembrança deles.
                     Viver cada dia como se fosse o único e o último é uma opção, no entanto, não satisfaz a todos. Eu, pelo menos, não conseguiria viver assim.
                    Mesmo os menos reflexivos, vez por outra se pegam tentando adivinhar o que será feito dos seus livros, dos seus objetos mais caros, das suas conquistas pela vida. E evitam imaginar o descaso com que certamente serão tratadas as coisas que tinham tanta importância  para eles.
                   Talvez seja a hora de estabelecer diretrizes, destinar bens materiais, evitando assim as desagregações familiares que costumam acontecer nas partilhas. Não é mórbido, é real. Seria bom se as pessoas ainda jovens, ainda no poder completo de suas faculdades mentais, organizassem seu patrimônio e suas aquisições na vida, colocassem tudo no papel, registrando em cartório, para que pudessem viver sua última etapa apreciável da vida sabendo que os bons seriam recompensados e os ingratos deserdados.
                   Banho de chuva, rolar na grama, saltar do trampolim na piscina, jogar bola, usar o cabelo molhado e a cara lavada como sua melhor moldura, fotos em close, dormir muito, jantar tarde, fazer planos, gargalhar, namorar – em toda a extensão e a gostosura da palavra, ser dono de si e do seu tempo, acreditar, experimentar, ter emoções intensas, sorrir para o espelho na hora de escovar os dentes, com satisfação. Nada disso nos pertence mais...
                   É claro que existe um outro lado. Tudo na vida tem dois lados, no mínimo. Mas, como esse texto não é de autoajuda, prefiro não comentar.
                   “A saudade é dor pungente, morena,
                    a saudade mata a gente...”



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