De nascimento e morte pouco domínio
temos. Uns por ouvir contar e outros nem isso. Nossa chegada ao mundo ainda
carece de algum registro, já da partida jamais saberemos. Se Deus dispôs assim,
que se há de fazer?
Mãe mesmo, na bucha, o guri nunca
teve. Ou, se teve, nunca lhe deu de mamar ou ajudou a curar suas dores de
barriga. Também, que precisão ele teria de mãe numa casa com tantas mulheres
carentes de filho, disputando a troca de seus panos mijados e até mesmo
oferecendo suas belas tetas sem leite para ele tentar sugar?
Quando entendeu o que era ter vó
descobriu que a Mama era quem mais se aproximava do perfil, muito embora sem
açúcar, sem afeto, sem contos de fada.
Pai então, desse nunca ouvira falar,
embora sempre houvesse um par de calças pelos corredores e mãos grandes a lhe
oferecer caramelos e petelecos em igual proporção.
Bem, se as pessoas que vivem na mesma
casa e comem da mesma comida formam uma família, aquela deveria ser a sua.
Nunca tivera outra, de maneira que não achava ruim, nem bom, aceitava como
parte do seu destino e vontade de um tal Criador que estava sempre espionando
suas travessuras, cheio de olhos e ouvidos e o castigava com cortes e arranhões
doloridos cada vez que exagerava nas artes.
Andava na ponta dos pés quando
desafiava as ordens da Mama, ou obedecia aos caprichos das outras mulheres em
troca de beijos, balas e moedas.
Aprendera desde cedo a sumir da parte
dianteira da casa tão logo caía a noite e as tias começavam a se fazer bonitas,
com bocas vermelhas e saias curtas, seios à mostra, penumbra e música alta.
Acostumara-se a pular sobre vômitos,
garrafas vazias e até um ou outro desconhecido emborcado no chão, feito um
pudim de cachaça. Na volta da escola tudo estaria outra vez no lugar e a
vassoura correria barulhenta pelas calçadas, perseguindo a água dos baldes
ruidosamente jogada, inclusive nos pés dos passantes.
Esta era a sua vida. Se era boa ou
ruim só o tempo diria, pois cada um vive do jeito que dá e pensar diferente
seria perda de tempo. Ademais, como comparar se só conhecera aquela?
- Miguel! Miguelito! Vem cá guri
safado! - era a voz irritada da Mama
cobrando a lição, a louça quebrada, a planta arrancada, a roupa do varal suja
com a bola.
- Miguelzinho! Faz um favor pra titia?
– era a vez de uma das quengas convocá-lo para ir à venda comprar cigarros,
Modess ou chicletes.
Na escola era dos piores, em todos os
sentidos, mas amigos não lhe faltavam; quanto mais crescia mais os colegas o
cercavam para ouvir as histórias mirabolantes que tinha pra contar da sua
família. Quando freqüentava a casa de alguns colegas de escola, com aquele
formalismo todo, ele se perguntava como eles conseguiam suportar vidas tão
restritas e disciplinadas e mal podia esperar a hora de voltar para casa.
Com a chegada da puberdade, além dos
hormônios chegou a curiosidade e se tornou confidente das tias, consolando-as
das queixas da vida, dos amores impossíveis, das exigências da Mama e da
saudade dos parentes humildes, da casa cheia de buracos e da vida que tanto
detestavam a ponto de fugir e ingressar nesta outra, menos difícil porque
anestesiada pela bebida ruim e falsificada que Mama vendia aos clientes.
Passar pela cama das tias, primeiro
como bebê chorão, depois moleque de recados, ombro amigo e homem foi
acontecendo naturalmente, sem grandes expectativas ou questionamentos. Ainda
que lesse muito mal, ajudou várias mulheres a escrever cartas, bilhetes ou a
decifrar alguma que chegasse. E aprendeu com elas muitos segredos de alcova,
muitos desejos secretos das mulheres na cama e o que elas realmente esperavam e
gostariam de encontrar. Cada uma delas tinha um segredo, uma técnica, algo para
lhe ensinar. E ele aprendeu.
Quando foi para o quartel descobriu um
mundo maior que o quintal da Mama e achou bom ter seu dinheiro para ir ao
cinema, tomar sua cerveja e até freqüentar bailões. Dançar e transar tinha sido
o suprassumo dos ensinamentos que recebera, portanto logo começou a ser
procurado e até disputado para uma ou outra dessas coisas. E a vida ficou ainda
melhor.
Nem alto nem baixo, nem gordo nem
magro, nem loiro nem moreno, nem bonito nem feio, Miguel tinha uma figura
normal, que se agigantava na pista de dança ou entre os lençóis.
Aprendeu a dirigir no quartel e assim,
quando terminou o serviço militar e ficou clara sua total falta de afinidade
com a carreira, ao invés de voltar ao vilarejo e ao velho casarão, empregou-se
de motorista na capital, conduzindo madames, suas crianças e seus totós pelas
lojas, escolas e salões de beleza.
De uniforme e quepe até que fazia boa
figura, além da discrição que aprendera a ter no lugar conturbado onde
crescera. Assim, conquistava as patroas fingindo-se de surdo diante dos telefonemas
comprometedores que elas recebiam no carro, pelo celular, ou pela facilidade
com que encontrava e logo esquecia os endereços estranhos aonde elas o faziam
levá-las.
Sua vida toda fora percebida como num
olho mágico por onde ele espiava tudo sem se fazer notar, sem ser visto.
Aos poucos, pinçando palavras soltas
aqui, gestos acolá, trejeitos mais adiante, foi descobrindo o verdadeiro
entendimento da alma feminina e de seus mais secretos desejos. Concluiu que a
mola propulsora de cada uma delas, com formas tão variadas e hábitos
diferentes, sintetizava-se apenas numa coisa: elas queriam se sentir DESEJADAS.
Quando o parceiro conseguia demonstrar claramente sua atração, seu genuíno
desejo por elas, o resto fluía espontaneamente, às vezes com certa relutância
ou timidez, em outras feito cascata incontrolável. Era a chave que faltava para
que as portas de uma vida sem sacrifícios e com muito prazer se abrissem para
ele. E ele soube usá-la.
Muitas vezes consolou suas patroas na
volta de algum desencontro amoroso, ou depois de uma briga feia com o patrão.
Em pouco tempo era disputado pelas madames, que aumentavam seu salário
substancialmente quando sabiam que outra pretendia roubar seu motorista. Sua
discrição estendia-se aos patrões, que faziam questão de mantê-lo para garantir
a satisfação das esposas e os acertos que faziam com ele quando pretendiam
fazer seus próprios programas.
Miguel logo concluiu que o mundo era
uma tela ampliada e retocada da casa da Mama, com problemas muito semelhantes e
pessoas mais arrumadas, mais perfumadas, todavia com vícios bem parecidos.
Não podia se queixar da vida que
levava, não lhe faltava nada, nem mesmo o sexo com aquelas mulheres de
aparência recatada e tão fogosas quanto suas mães de criação.
Até que uma delas resolveu se
apaixonar por ele. Crises de ciúme, ameaças, tentativas de suicídio, uma
incomodação que não estava no script. Logo a mais rica, aquela que poderia lhe
bancar por mais tempo, com todos aqueles luxos a que ele já estava se
acostumando. Pois a doida queria largar marido, casa, filhos e fugir com ele
para um lugar distante, para viver aquele ideal romântico de “um amor e uma
cabana”. Logo ele!
Os encontros nos motéis de luxo já não
tinham a mesma paixão, pois o clima de pecado, de proibido, de fugaz fora
substituído por lágrimas, declarações de amor intempestivas, crises de ciúme e
todo aquele elenco desagradável de destempero e final de festa.
Miguel não teve outro jeito a não ser
pedir demissão do emprego e sumir por uns tempos.
Quando reapareceu, a mulher continuava
se consumindo de amor e culpa, descobriu seu paradeiro e ameaçou contar tudo ao
marido, dizendo preferir vê-lo morto ou preso a saber que ele se envolvera com
outra.
Diante das negativas do amante ela
resolveu cumprir a ameaça. Chamou o marido na casa de Miguel e entre soluços e
ranger de dentes contou a ele que o motorista tinha sido seu amante, que ela o
havia traído durante meses com ele e que iria entender se ele fizesse justiça
com suas próprias mãos ou o entregasse à polícia.
O marido, impassível, deu-lhe vinte e
quatro horas para abandonar a casa, apenas com a roupa do corpo, se não
quisesse se ver difamada e enlameada na sociedade por onde fazia questão de
desfilar, citando amiúde o sobrenome de seus ancestrais ilustres e as escolas tradicionalíssimas
que frequentara.
Aos prantos, tentando um último gesto
de altivez em memória dos parentes importantes, ela deixou o local certa de que
ouviria um tiro, ou a sirene do carro policial.
Mesmo proibida, arrumou uma mala com
suas melhores roupas, chamou um táxi e foi refugiar-se na casa de uma velha tia
que, por estar senil, faria poucas perguntas.
Meses depois, já oficialmente
divorciada e tentando retomar sua vida, sob o pretexto de apanhar uma jóia de
família para a tia, voltou ao casarão onde vivera tantos anos cercada de luxo e
empregados, entrou sem se fazer anunciar pela criada que a conhecia bem e foi
atraída por música, vozes e risadas na sala de reuniões. Estranho aquela música
numa casa soturna e a cascata de risos onde costumeiramente a boca apenas se
esgarçava de vez em
quando. Espiou.
Seu coração deu um baque fortíssimo no
peito, suas pernas fraquejaram e a cor fugiu de sua face encovada pelos meses
de tristeza e reclusão. Amparou-se no batente da porta e soltou uma exclamação
abafada, não audível pelo volume da música e pelas risadas. Cambaleou e
conseguiu entrar, com olhos esbugalhados e boca entreaberta, como se visse um
espectro de outro mundo.
Num canto da sala junto à janela dois
vultos se abraçavam rindo loucamente, bebericando martínis e roçando os lábios
para falar. Perfumados, ricos, rindo à toa como só os abastados conseguem
fazer, deixavam claro que seu lugar naquela casa fora preenchido.
Ela se encolheu, dobrou-se sobre si
mesma e juntando toda a força que lhe restava gritou:
- Miguel!
O casal se virou sem susto, apenas com
um olhar de desagrado e impaciência.
- Miguel? Repetiu ela, como se não
conseguisse acreditar no que seus olhos viam.
- Sim, disse categórico o ex-marido.
Miguel agora é o dono e senhor da minha casa e da minha vida.
E voltaram a se abraçar, dessa vez
mais estreitamente e com risadas ainda mais altas e voluptuosas.
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