Encurtando
caminho até o salão de beleza, atravesso uma região pouco segura, quase favela,
mas que não chega a me assustar. Carro trancado, películas escuras e a
distância curta me encorajam. O fato de ter lecionado em comunidades de fama
duvidosa contribui para este arrojo.
Pois bem, no bairro em questão as crianças brincam soltas na rua, correndo,
soltando pipas, andando de bicicleta, gritando, extravasando energia. Não se vê
criança obesa, ou deprimida por ali.
Até os animais parecem mais vivos, mais felizes, correndo de um lado para
outro, latindo (os cachorros, é claro), rolando na grama, mordiscando um ao outro.
A comparação é inevitável. Por onde andam nossas crianças? Na escola, depois na
casa dos avós, ou presas em casa com empregadas (ou sozinhas), assistindo
TV, grudadas no computador, nos videogames, na geladeira, na cama.
Letárgicas, gordas, tristes, porque na rua tudo é perigoso e as grades nas
janelas garantem a esses pequenos anjos uma visão de penitenciária.
Os pais, absorvidos pela sociedade de consumo, trabalham horas a fio, fazem
horas extras e chegam em casa moídos, sem ânimo para nada além de um banho, TV
e cama. Gordos também, estressados ao extremo, envelhecendo precocemente,
discutindo por qualquer bobagem (na frente dos filhos), numa correria insana ao
encontro de bens materiais apenas. E perdendo a infância e a adolescência dos
filhos (na juventude são eles que debandam) com a desculpa de lhes deixar
heranças ou "segurança" no futuro.
Os
animais de estimação cada vez mais substituem os filhos, principalmente nos
lares onde as pessoas exigem "fidelidade e obediência caninas", para
aqueles que não admitem réplicas e que querem ser amados e aceitos mesmo por
quem pisam ou enxotam. Aí só cachorro mesmo...
Pois estes animais, humanizados ao extremo, igualmente vivem rechonchudos
(porque ociosos), comendo coisas erradas, desenvolvendo hábitos contraditórios
a sua condição. Não basta amar e cuidar, os donos acham que tem que beijar,
colocar na cama, no carro, no colo, cheios de roupas e perfumes. Nem sempre
este tratamento é o melhor para eles, pois duvido que prefiram viver presos em
apartamentos a correr soltos pelos quintais, fuçando, roendo ossos, sendo cães
(ou gatos) de verdade.
Minha geração foi criada solta, caminhando até o colégio e por toda a cidade. E
os gordos eram minoria.
A "geração merendinha" (lembram daquele waffle que quase todas as crianças levavam de lanche para a
escola?) dos meus filhos já começou a se encerrar nos prédios. Eles deram mais
sorte, pois viveram muito em vilas militares, com espaço de sobra.
Meus
netos vivem em apartamentos, com redes de proteção nas janelas e não são muitos
os animais que já viram ao vivo. Não
falam com estranhos, não ficam na rua sozinhos nem por um minuto e dependem da
boa vontade dos adultos para carregar suas bicicletas no carro, ou jogar bola
com eles nos parques. Ah, e tem que levar algum amigo junto, senão, que graça
terá a brincadeira?
Fomos, aos poucos, nos encerrando e abdicando dos nossos espaços para aqueles
que não hesitam em nos roubar, machucar, até matar. Os morros, com vista
privilegiada das cidades, vivem pertinho da natureza, enquanto isso, os ditos
"homens de bem" sonham com condomínios fechados, carros blindados,
segurança vinte e quatro horas.
A vantagem é numérica. Para cada filho da gente que estuda, se esforça,
economiza, batalha, pipocam mais de vinte sem eira, nem beira, nem vontade de
fazer nada para conseguir as coisas que querem, além de adquirir uma arma.
Triste é a sensação de impotência, o discurso gasto de que é preciso educar o
povo, ensinar a evitar filhos todos aqueles que não tenham condições de
criá-los, porque assim não dá! Esta proporção geométrica da marginalidade tira
qualquer esperança de quem opta pela paternidade consciente e responsável e, no
mundo de hoje, só quer ter um filho, no máximo dois.
Pra viverem presos, sem chance de usufruírem da vida o que a liberdade
proporciona, para que ter mais?!
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