terça-feira, 26 de maio de 2015

O TEMPO PASSA




                         Um dia, a seda da blusa rivalizava com a da pele, o perfume era mais intenso e dos olhos saíam faíscas cintilantes. O coração parecia uma retreta antecipando o beijo e o espelho era cúmplice e admirador. O sorriso fazia o sol aparecer e os braços se multiplicavam para tanto abraçar.
                        A areia da ampulheta escorre implacável, os termômetros da pele enlouquecem, o sol cobra por cada bronzeado e a balança oscila perigosamente. É o marcha do tempo, que nada, nem ninguém consegue deter.
                       Os anéis já não enfeitam as mãos pequenas e fortes, treinadas no piano e tão lisinhas, tão macias... Agora, são mãos com as marcas da vida, dos colos, dos quitutes, do amparo, do carinho, da força, do fato de medir o calor das testas infantis melhor até do que os termômetros.
                      Os olhos já estão cansados, precisam de lentes cada vez mais potentes, porque se deliciaram em tantos rostos amados, tantos filmes inesquecíveis e, sobretudo, viajaram muito nas centenas de livros saboreados diariamente.
                     Os ouvidos, que hoje pedem que se aumente o volume da TV, testemunharam as maiores declarações de todas as formas de amor, a perfeição das partituras musicais, a voz dos cantores preferidos, os corais inesquecíveis, os pais chamando pra almoçar, o balbuciar de tantas gerações.
                    As pernas, hoje mais lentas, às vezes doloridas nas articulações, já dançaram em ponta e meia ponta, sambaram em muitos carnavais, valsaram nos bailes de gala, montaram a cavalo, nadaram no mar, no rio e nas piscinas, correram, jogaram bola, subiram e desceram escadas.
                   A voz forte ensinou muito, cantou e solou no Coral, deu canja nos bares da noite, retumbou nas missas, embalou as crianças, chamou o nome dos queridos, gritou pra dentro.
                  O coração já não aguenta qualquer baque, sofre mais de saudade, descompassa nas emoções, mas prefere guardar afetos a mágoas, colecionar amores e amados, sem lugar para desafetos ou ingratidões.
                  O tempo passa, ainda bem que um coração seletivo faz toda a diferença!




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