Para começo de conversa, será que este substantivo
pode ser utilizado no plural? Ou a realidade é uma só, sempre? Será então
única, ou múltipla? Exata ou relativa? Sem estabelecer estes critérios, como se
pode dizer, então, que o sujeito está fora da realidade ou não vive de acordo com a realidade?
Imagine-se a realidade de um turista, por exemplo,
que está de passagem pelo país, ansioso por usufruir ao máximo o que de melhor
lhe for oferecido, sem se importar muito com os nativos e seu modo de vida. Ele
certamente viverá de acordo com o que se propôs e essa será a sua realidade.
Um refugiado, escondido dos órgãos de imigração, terá
uma visão do país completamente diferente e bendirá os becos e ruelas de pouca
luz que protejam seu anonimato, pouco se importando com os pontos turísticos e
os cartões postais do lugar.
A realidade de uma pessoa doente difere muito daquela
de quem esbanja saúde. E seus atos serão naturalmente permeados pela
perspectiva, ou a falta dela, de uma vida mais breve e/ou mais sofrida.
As modelos passam fome por conta de seu trabalho, o
que justifica, mas não explica; dormem ouvindo os gemidos de seu estômago, por
pura vaidade, mesmo com a geladeira abarrotada de comida. O ato é o mesmo – não
comer – mas a realidade é muito diferente dos miseráveis e famintos que
aceitariam um pão dormido, um iogurte vencido, qualquer coisa que neutralizasse
o suco gástrico que lhes corrói as entranhas.
A realidade dos ricos é completamente diferente da
dos pobres; o próprio tempo, para quem depende de ônibus ou das suas pernas,
fica muito relativizado. Adoecer sem remédios, sem médicos, sem exames é uma
realidade que algumas pessoas jamais conhecerão. Como exigir atitudes
semelhantes em situações tão díspares? Como esperar o mesmo cumprimento de
horário, o mesmo sorriso, o mesmo desempenho de quem já chega ao trabalho, ou à
escola cansado de tantas conduções, tanto esforço sobre uma xícara de café
puro, bebido, requentado?
A realidade do ambientalista pouco condiz com a do
empreiteiro que, se pudesse, construiria lindos hotéis sobre o mangue, ou
aterraria largas faixas à beira-mar para nelas subir seus condomínios de luxo.
Existem pessoas que pensam a vida, outras que apenas
a usufruem. Gente reflexiva e gente tipo “bobo alegre”, repetindo frases de
livros de auto-ajuda, passando pela vida impunemente, sem acrescentar nada a
ela e nada dela entender. Aos primeiros dão o rótulo de “tristes, deprimidos,
baixo astral”, como se o ser humano tivesse por missão abrir os olhos a cada
manhã, olhar-se no espelho e dizer: - Sou
lindo, capaz e feliz! Posso tudo! A estes, nem a visão de um homem velho
arrastando pesado carrinho de papelão, sob forte chuva, desviando dos carros
potentes, consegue causar alguma estranheza.
- Fazer o quê? dizem,
sacudindo os ombros.
Esta é a realidade, que não pode mais ser usada no
singular. Uma realidade de caos social, violência urbana, falta de honestidade
e de valores em geral. Por
quê? Sinal do fim do mundo? Sodoma e Gomorra? Apocalipse? Aquecimento global
para o mundo terminar com fogo desta vez? Não sei. As religiões é que devem se
preocupar em nos orientar nesse sentido. O que sei é que o tripé que sustentava
a humanidade foi desfeito, causando perda total no bicho homem. O que nos
mantinha unidos e nos dava condições de vida comunitária era a
família, a escola e a religião. Destruiu-se a família, sucateou-se a
escola e questionou-se ao máximo, até o ponto de descrença, a religião. Deu no
que deu. O resultado está aí, para quem quiser ver. Crimes hediondos,
inimagináveis; cadeias cheias transformadas em pós-graduação do banditismo;
hipocrisia social (jovens ricos sustentando o tráfico de drogas); falta de
respeito, de humanidade, de solidariedade, de caráter, de civilidade.
Infelizmente, desta realidade todos compartilhamos e temos nossa parcela de
culpa, nem que seja por omissão.
Mudá-la? Não é impossível, porém não será trabalho de
um homem, um governo ou uma instituição. Ou nos reunimos e encaramos o problema
de frente, sem meias palavras, ou, daqui a pouco, nossa realidade se
assemelhará aos nossos piores pesadelos. Não podemos nos eximir. É nossa culpa
sim! E reconhecê-la pode ser o primeiro passo para transformá-la. Nossos
descendentes merecem, com certeza.
Um comentário:
Muito bom esse texto. Bete
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