quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A TORNEIRA DE NATAL

           Manhã do dia 25 de dezembro. Natal. Passeando com meu pai na praça do bairro, recordações, emoções novas, diferentes sensações vão se misturando a cada passo. Revejo-me criança, apressada para a escola, furtando flores para a professora ou em ruidosas correrias com a turma da rua, a pé, com patinetes ou bicicletas. Pensava em me tornar saudosista lá pelas tantas da vida, entretanto, eis-me aqui, babando pieguices sob os ipês da velha praça... A sombra generosa dos monumentos, o chafariz, o quiosque dos namorados e as alamedas sombreadas que conduzem à Igreja e às ruas centrais vão contando, passo a passo, minha história de vida naquela cidadezinha que já fora o centro do universo para mim. Caminhando agora sem pressa, uma vez que meu herói envelheceu como um mortal comum, vou sorvendo, com interesse, as lições de vida que ele me passa.

         Já tínhamos caminhado o suficiente para suas pernas precisarem de um descanso, portanto escolhemos um banco no centro da praça, protegido do sol pelas copas das árvores e recomeçamos o assunto; sempre casos antigos, de amigos que já tinham morrido, parentes que povoaram sua infância, políticos honestos e idealistas, tudo coisas extintas. Nesse momento, um rapaz, desses frutos da moderna e permissiva educação, torceu delicadamente a torneira da alameda central, tentando refrescar o porre da véspera e arrebentando com a frágil instalação. Logo um imenso chafariz enfeitou o passeio... e os parcos recursos públicos minguaram um pouco mais.

          Meu pai e eu, incapazes de consertar o estrago, ficamos conjeturando sobre as reações diversas dos transeuntes. A maioria passava indiferente, tomando o cuidado único de não molhar os sapatos na água que começava a empoçar na calçada. A primeira pessoa a tentar consertar o estrago foi uma freirinha que saía da Missa das 10h, mas não conseguiu. O jato forte atravessava suas mãozinhas delicadas, habituadas a desfiar as contas do rosário e não a soldar canos. Depois de muitos indiferentes, surge um guarda municipal que tenta estancar o vazamento dos cofres públicos, porém desiste depressa demais. Uma menininha pára a bicicleta e experimenta deter a enxurrada com sua mãozinha econômica - valeu a intenção apenas. Assim jorrava a torneira de Natal, refrescando a raiva da falta de festa, de peru, de presentes na mesa dos trabalhadores.

           De repente, surge uma figura, nossa velha conhecida, agasalhada mesmo no verão, com passos rápidos, uma touca cobrindo a carapinha branca, acompanhada por sua cachorrinha chamada Nenê. Vem cumprimentando todos os passantes, sempre com um sorriso aberto, sem se queixar de nada ou pedir qualquer coisa. Outro dia, tive a sorte de cruzar com ela na calçada e não me sofri. Perguntei seu nome e idade.

           - Maria do Espírito Santo. 96 anos.

         Admirada, quis saber a receita que ela tinha para permanecer lúcida e lépida com essa idade.

         - Não tomar remédio de médico, diz ela. Porque tudo o que nos cura está na natureza, nas plantas. E desfiou um sem número de chás e mezinhas dos quais pouco ouvira falar. Diz que tem tudo o que precisa no seu quintal. Maranhense, dona Maria diz que é nascida e criada num sítio do município de São Luiz. Não acha relevante o fato de um ex-presidente ter também nascido lá, mas cita Gonçalves Dias de cor, achando que a terra com palmeiras e sabiás é lá mesmo. Tudo o que diz faz muito sentido. Caprichosa, a roupa impecavelmente limpa, pés e mãos grandes, alta e magra como uma africana de boa estirpe, dona Maria vive sozinha com sua Nenê e não tem medo de nada...só de remédios. Vendo o estrago feito à torneira da praça, balança a cabeça e defende a cachorrinha que, segundo ela, procede como um humano e nem todo humano procede que nem ela. Sempre apressada, despede-se recitando: -“QUEM ESPERA EM DEUS NÃO CANSA, QUEM ENCOSTA EM DEUS NÃO CAI E, SE CAI, NÃO SENTE A QUEDA.”

         Um avô atencioso, passeando com os netos, ao perceber o estrago volta em casa e traz a varinha mágica que realiza o milagre de conter as águas da insatisfação - um alicate. Uma vigorosa torcida no cano e PRONTO. Tudo voltou ao normal na velha praça. Até a calçada molhada o sol secou rapidinho, para que não se pensasse em lágrimas numa data tão significativa.

3 comentários:

Cau disse...

Lindo conto. Gosto dos teus escritos. Aceitei o desafio nos 'Seguidores' e estou comentando. Mas podes crer que já tenho lido os teus escritos e gostado deles. Escreves com muita sensibilidade e inteligência.

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

Maria Luiza
Você não escreve mais contos, escreve poesia (em prosa)da melhor qualidade. Eu te coloco no mesmo pedestal de Quintana, Hélio e outros grandes poetas do Alegrete.
Abraço do Francisco Carlos

Anônimo disse...

Muito sensível, lindo mesmo! Elizabete