segunda-feira, 22 de agosto de 2011

SENSAÇÕES

            Esta foi publicada na mesma antologia carioca.


               É fato conhecido que nossa memória é também olfativa e visual. Quem não viaja num aroma, seja de perfume, mingau, fruta madura, cavalos, mar, enfim, o olfato nos leva a lugares dos quais nem imaginávamos ainda lembrar. A visão desempenha papel semelhante, somos capazes de lembrar, com detalhes, o rosto, a expressão e até a letra das colegas de Ginásio, por exemplo.
          Hoje acordei sentindo a memória na ponta dos dedos e descobri que ela pode também ser táctil. Não é a mesma sensação do teclado do piano. A partir dele extraímos músicas, ruídos, acalantos, guerras.
         A memória a que me refiro, no entanto, é aquela de passar a mão, levemente, sobre aqueles vestidos especiais, estendidos sobre a cama da avó, recém chegados da costureira. A maciez do veludo, a delicada aspereza das rendas e dos bordados, a goma dos colarinhos e das anáguas rivalizando com o impacto visual. Três vestidos, notadamente, ficaram impressos nas minhas retinas e na ponta dos meus dedos: o da primeira comunhão (de broderi); o do debut (de organdi suíço) e o de noiva (de organza). Todos brancos, imaculados, com bordados diferentes e aquela sensação antecipada do momento que eles representavam.
          Mais tarde, meus dedos se lembram de alisar roupinhas de bebê, sapatinhos, toucas, travesseirinhos, antegozando a emoção de trazer ao mundo uma criança.
          Outras sensações permanecem com a gente, como aquelas sentidas nas ruas, com os assovios e galanteios para nossa passagem de menina a moça.
          Os primeiros contatos físicos com o sexo oposto, roçar de mãos, de faces, de lábios, tudo fica cristalizado na memória, bastando invocá-la para voltar a sentir.
          As mãos da mãe na testa da gente, procurando sentir a febre cedendo.
          Nossas mãos nos cabelos do filho adormecido e do pai velhinho, sensações parecidas, como se já fôssemos mãe de ambos.
          As mãos que seguram fortemente as mãozinhas pequenas para atravessar a rua e depois embalam o neto, decorando seus traços, transpirando amor.
          Mãos postas, alisando cada conta do rosário e pedindo por cada filho, cada desafio, cada prova, cada viagem, cada segundo.
         Quem pode esquecer a sensação de um banho de chuva no verão? Da água correndo pelo rosto, pelos cabelos, encharcando a roupa?
         A sensação do toque nas mudanças do corpo e do rosto, no trabalho do tempo sobre eles e sobre as mãos que examinam também. Não dá para comparar, é questão de aceitar e, se possível, chegar diante do espelho sem óculos. Afinal, se a natureza é tão sábia a ponto de nos diminuir a visão para não enxergarmos as rugas, porque iremos contrariá-la?
          A sensação das mãos do amado passeando em nossa anatomia é sempre agradável, em qualquer etapa da vida. E independe do nosso manequim. Afinal, ele também não deve ser mais tão elegante.
          Por fim, a melhor das sensações: mãos que enlaçam o filho que chega e se fecham num abraço, como se, assim, pudessem guardá-lo e impedir sua partida. Não tem explicação, nem preço.


2 comentários:

Gilda Souto disse...

Maravilhoso texto,todo compartilhado em sensibilidade e memória de quem lê! PARABÉNS!

Lino Tavares disse...

Nesse misto de poesia e filosofia, você nos contempla com mais uma bela lição de vida, amiga Maria Luiza.
Seus textos continuam um primor.
Bj no coração
Lino Tavares