Um miniconto publicado na Antologia de Poesias, Contos e Crônicas da All Print Editora, na XV Bienal do Livro Rio 2011, na pág 70.
Primavera dos primeiros anos do século XXI, numa praia da ilha de Santa Catarina. O mar revolto sintoniza com o ir e vir dos pensamentos daquela mulher solitária e circunspeta. As pegadas na areia são as mesmas, apenas mais fundas, devido aos quilos a mais presenteados pela menopausa. O cabelo mais curto e ainda rebelde, despenteado pelo vento. Poucas rugas ao redor dos olhos sem brilho, parecendo mais escuros do que antes.
Nascida na metade do século anterior, naquele momento sua vida lhe parecia muito antiga, fora de moda, de contexto, de sentido. Pior, sem chance de recomeço. Deveria ter anotado todas as idéias – tantas – para não precisar fazer uso de frases feitas, pensamentos alheios como “a vida é resultado das escolhas que fazemos”. Muitas vezes tirara conclusões pertinentes em sua forma sistemática de pensar a vida, todavia não lhe ocorria nada melhor do que essa frase dita por alguém.
Em que momento decidira casar com Nelson? Quando largara o ballet? Por que desistira da Medicina? Quantos sim precisara dizer para chegar até ali? Por que não aprendera mais cedo a dizer não? Overdose de sorrisos, de filhos, de convites, de mentiras, de lágrimas, de suspiros, de recordações. Seriam mesmo escolhas?
- Vamos pentear estes cachos, um a um, para o papai te achar bonita! - Mastiga bem, de boca fechada! - Tira o cotovelo da mesa! - Vai estudar! - Desce daí! - Vai tomar banho! - Senta direito! - Acende a luz para ler! - Apaga esta luz que é tarde! - Nada de namoro no portão! - Caminha direito! - Escova os dentes! - Chega!
O amor como tônica da vida é combustível oscilante, embriaga e maltrata no depois. Sem ele, o deserto torna-se insuportável. Medidas de amor deveriam ser vendidas em praça pública, para que nunca errássemos na dose. Morreu por amor, de desamor, de mal de amor... morreu... o amor. E daí?
Moisés, berço, cama de meia grade, sem grade, de casal, sem casal. A cara da mãe, os olhos do pai. Qual pai? O da escolha? Ou o preterido, o escondido, o casmurro?
O sal das lágrimas é ínfimo diante da salmoura do mar. Desnecessário, incólume. A escolha foi feita e não pode ser mudada, tarde demais. Que importa? A quem importa?
- O meu belo castelo... – O nosso é melhor!... Parecem irmãs, tão amigas, tão grudadas! Duas belas gaivotas correndo em círculos pela areia fina, enchendo seus sorrisos de maresia, rindo à toa, saboreando a vida através das escolhas alheias. O mesmo destino que os apresentou, separou, escondeu, agora brincava de novo de colocá-los à prova. Tantos lugares, tantas escolas, tantas crianças e elas, com gritantes e pecaminosas semelhanças, foram cair na mesma lista de chamada e se tomarem de amor uma pela outra.
- Tenho dois irmãos e uma amiga que é a minha irmãzinha! Gêmea!
O calvário de reviver cada céu e cada inferno expiara suas culpas, não seria possível arquitetar castigo maior aos infiéis, uma vez que as chibatadas eram aplicadas por rostos angelicais, olhos verdes idênticos e até a mesma pintinha no pescoço.
O poder de criar e destruir não deveria ser dado a um ser tão mediano, franzino, comum. Deveria caber aos deuses dispor sobre tantas vidas e não a uma simples mulher acorrentada pelo desejo, vítima da luxúria e do encantamento de quem realmente entendia de amor e sabia amar. A vida e a morte naquele instante, sublimadas na eternidade de algumas horas, frutos ácidos de impulsos incontroláveis, ao invés de escolhas.
O mar é a testemunha muda da circularidade da vida. Diante dele, também ela correra feliz, esbelta, ágil, entregando-se à força dos hormônios e dos sentimentos. Na areia que seus pés pisavam escrevera nomes, fizera cálculos, enterrara lágrimas de saudade, de medo, de arrependimento. “O meu belo castelo...”
A mão pequena desperta-a de suas reminiscências e a coloca diante do círculo agora fechado para sempre:
- Vó, minha amiguinha está tão triste que até me dá vontade de chorar. O avô dela morreu...
Um vento frio, remanescente do inverno, passou pela mulher e ela disse:
- O avô dela... sim, pode chorar minha filha.
Fechava-se, enfim, o círculo. Com aquele avô (de ambas) enterrar-se-ia o passado, o pecado, o sabor da vida. Melhor assim.
Os passos se tornaram mais pesados na areia fofa, revirada pelos brinquedos infantis. O vento enxugou todas as lágrimas, que nem eram tantas afinal. Agora poderia vivenciar mais um dito popular, mais uma frase alheia, que caía como uma luva para as suas reflexões no momento.
- Viver sem remexer no passado, saboreando o presente e sem medo do futuro. Era isso. Finalmente.
Um comentário:
Amiga Maria Luiza
Seu texto "Círculos" não é um miniconto, é poesia pura e da melhor qualidade. Parabéns. Abraço do
Francisco Carlos
Postar um comentário