sábado, 28 de agosto de 2010

ÚLTIMO CONTO DA TRILOGIA

SEMPRE ÀS QUARTAS
                -Tac, tac, tac, tac. Tac, tac...tac...tac. Saltos finos e altíssimos riscando a calçada, de um sapato sonhado e muito caro, um dos tantos presentes obtidos nas tardes quentes daquele motel afastado. Como se o êxtase e a entrega não fossem suficientes. Uma paixão avassaladora marcando o corpo, impregnando até a alma de um suor pegajoso, hormonal, num frenesi característico dos finais iminentes.
                 A peruca, emprestada da colega que passara por uma quimioterapia e agora vivia feliz com sua família na ilha de Santa Catarina, deixara sua silhueta mais alongada, contrastando com a pele clara do rosto. A bolsa de grife, autêntica, displicentemente jogada no ombro, fora uma compensação do amante pelo Natal solitário, passado diante de garrafas vazias. Impedindo seu reconhecimento, óculos grandes, da última moda, quase viseiras espelhadas que ela mesma comprara no dia anterior. Saia justa, blusa decotada, mal encobrindo a lingerie de renda, comprada para a ocasião. O perfume de sempre, aplicado com exagero premeditado. Depilação, manicure, pedicure, tudo rigorosamente em dia.
             A frágil e elegante figura feminina, que pisa o chão com firmeza e determinação, em nada lembra aquela mulher histérica que destruíra o apartamento dois dias atrás, quebrando espelhos, porta-retratos e CDs, num ataque de fúria incontido, com as palavras dele retumbando nos ouvidos, como a insuflar sua raiva.
            Esta que caminha firme está serena e, apenas uma vez, seus olhos verdes, calmos e profundos demais, piscam ao se lembrar da criança.
            - Menino chato! Ofensivamente bonito, ousando ligar pai e mãe naquele meio palmo de rosto. Que ódio! Como ele se atrevera a levá-lo até lá, com seus detestáveis brinquedos, sua fome insaciável e aquele excesso de cortesia? Com certeza imaginara que os cachinhos loiros adormecidos em seu sofá iriam comovê-la. Nunca!
             E aquele homem, seu homem, transformado em babá, cheio de rapapés com aquela criança cheia de vontades? Custava a crer que aquele fosse o mesmo corpo que a enlouquecia nas tardes de quarta-feira, há tantos anos. Uma irritação crescente ameaçava sufocá-la, a cada vez que percebia seus olhos se iluminarem ao falar com o menino, ou sua voz amaciar quando se dirigia a ele. Teve ímpetos de arrancar sua roupa e se jogar sobre ele ali mesmo, numa cavalgada alucinante, para arrancá-lo daquele torpor paternal.
              O menino derretia-se inteiro nos braços do pai e, embora soubesse da sua existência, nunca lhe parecera merecer tanta importância. Por que o levara lá? Pensava, talvez, que ela se iria comover e aceitar sua despedida, pelo simples fato de estar diante do fato consumado? Ou que iria, nobremente, renunciar a ele pela criança?Tolo.
             - Vida nova, emprego novo, nova chance ao casamento - ele dissera. Como? Agora? Seis anos depois? E ela? E a vida que ela não teve? A família que desperdiçou? As más línguas? Os vizinhos? Tudo?
             Gritou, mordeu, ameaçou, destruiu tudo pela frente e ouviu a porta bater e ele partir, segurando firmemente ao colo seu pequeno tesouro.
             Quando as lágrimas secaram, a cabeça recomeçou a funcionar e seus olhos verdes lançavam faíscas enquanto caprichava numa pesada maquilagem. Não ia ficar assim, isso não!
             Então agora ele seria chefe da segurança do carro forte? Muito bem. Vamos ver como seria seu primeiro dia de trabalho nesta retomada da sua vida! Não fora difícil descobrir seu roteiro, pois o bairro era pequeno e os horários do recolhimento do dinheiro conhecidos. Dirigiu-se ao supermercado mais próximo e, lá de dentro, pode acompanhar a movimentação dos guardas e dos malotes. Seguiu, então, rapidamente para a agência bancária da esquina, que tinha sido assaltada diversas vezes, inclusive no momento da entrega do dinheiro ao carro-forte.
            Tac, tac, tac...tac, tac, tac...
            Postou-se atrás de uma coluna e aguardou o posicionamento dos vigilantes. Percebeu um jovem, talvez no seu primeiro turno de trabalho, visivelmente nervoso, com os lábios contraídos, o rosto pálido e trejeitos nos cantos da boca evidenciando nervosismo. As mãos suadas seguravam a arma, com o dedo no gatilho. Era esse!
           Com a segurança de quem não tem mais nada a perder e clama por vingança, ela se aproxima do rapaz, que treme imperceptivelmente. Num gesto repentino, ela saca da bolsa uma arma e a aponta na direção do rapaz. Ele treme, estupefato, e demora um segundo até apertar o gatilho da sua própria arma, duvidando que aquela figura feminina realmente oferecesse risco à sua missão.
           O corpo da jovem é violentamente lançado para cima e para o lado, num tiro certeiro na cabeça, desferido pelo chefe da segurança, que se encontrava no interior do carro-forte e acompanhara a cena. O impacto arrancara a peruca escura e os cabelos cor-de-fogo da moça espalharam-se por suas costas, com fios de sangue entre eles. Sem os óculos, os olhos de esmeralda, sem vida, insistem em encará-lo. Ao lado, a arma de brinquedo que seu filho esquecera no apartamento dela. No interior do carro-forte, coloca o rosto entre as mãos e cai num choro convulsivo e redentor.
              Pouco tempo depois, um novo quadro se desenha. Pai, mãe e filho caminham à beira-mar, entre risos e conversas. De repente, cruza por eles uma jovem de cintura fina, bumbum arrebitado, lábios carnudos, olhos maliciosos e ele a encara, cheio de promessas... Tornaria a vê-la, com certeza, em muitas quartas-feiras!

Um comentário:

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

No mínimo algo diferente de tudo que eu já lí: o final te pega totalmente desprevenido e te deixa chocado. Apesar de ter gostado deste, acho o 2º conto o melhor da trilogia. Sérgio Faraco que se cuide, você vai longe, amiga.