Ela passara a infância dormindo no quarto grande da avó.
Desde que o avô morrera, o amplo dormitório da avó ficou ainda maior e mais
vazio. Por uma dessas razões que só os adultos entendem, sua família se mudou
para o casarão dos avós e acomodaram a sua cama de criança ao lado da cama de
casal da avó. E ali ela passou por muitos sustos... porque a avó cismava que o
marido vinha visitá-la quase todas as noites, conversava com ele, as tábuas do
assoalho rangiam e ela cobria a cabeça com o acolchoado, tremendo de medo.
Queixava-se para os pais, no entanto, quem prestaria atenção às reclamações de
uma menininha de cinco anos?
Como quase tudo na vida tem dois lados, ela aprendeu muitas
coisas boas nessa coabitação com a avó. Aprendeu a rezar antes de dormir e ao
acordar, a andar sempre muito limpa e cheirosa, a não aparecer pra ninguém sem
se arrumar e passar batom e também a ter medo de fantasma e de tormenta. Nessa
hora, ela corria a pegar a palma benta no Domingo de Ramos, colocar numa latinha
e esperar a avó acender o fósforo e queimar para sossegar a tempestade.
De manhã cedinho, espiava a avó deitada de costas nos
travesseiros, alisando os cabelos e pensando, às vezes com um meio sorriso,
noutros circunspecta. Achava graça das idas e vindas da avó até o banheiro,
quando sempre esquecia alguma coisa para o banho. Também, era um sabonete e uma
toalha para o rosto, outro para o corpo e ainda outro para o cabelo. Muita
coisa!
Ficava encantada vendo a avó desenhar o contorno dos lábios
cheios com o batom, formando um coração perfeito no lábio superior. A avó era
cheinha, mas seus vestidos eram tão bem cortados que seu corpo parecia sempre
muito harmonioso. Por causas genéticas e hereditárias sua avó tinha ficado com
pouco cabelo na frente, mas possuía um aplique para cada ocasião e uma linda
peruca para as ocasiões especiais. No dia a dia usava charmosos turbantes e só
libertou a cabeleira rala bem no fim da vida.
Por essa proximidade, ou pelo fato dela conviver mais com a
avó, já que a mãe trabalhava fora, dona Brenda foi uma influência determinante
na vida de Camila, que lhe copiava os gestos, repetia os chavões e imitava a
rotina que presenciava diariamente. Até dedilhando o piano elas se pareciam.
Dona Brenda iniciou Camila nas artes musicais e também nas artes culinárias,
despertando cedo nela o gosto por ambas.
Quando a neta começou a crescer, as expectativas e cobranças
da avó aumentaram. Ia junto à costureira provar os vestidos e deixava a pobre
mulher quase louca de tantas exigências. Tricotava e fazia crochê para a única
neta mulher, levando horas sentada na beira da cama num tece e desmancha
interminável. Sorria orgulhosa quando achavam a menina parecida com ela e
contava muitas histórias da sua infância, dos namoros, dos bailes sentada na
cadeira de balanço, com um olhar lá pra dentro e lá pra trás da sua vida. Ainda
que amasse a mãe, Camila se sentia muito filha da avó.
Com a chegada da adolescência, as meninas queriam ter mais
privacidade para tratar de seus assuntos, queriam poder sentar na cama, dar risada
alta e foi assim que Camila ganhou um quarto novo, lindo, quando completou
quinze anos. Agora seria só ela, seus livros, suas bonecas, seus segredos, no
entanto, a avó continuou a ser uma grande referência em tudo o que fazia, ou
pensava fazer. Como todo adolescente, Camila se tornou mais contestadora, menos
cordata e dona Brenda não admitia isso. Foi um período conturbado onde a
mediação da mãe entre as duas gerações foi fundamental.
A avó ajudou a escolher o vestido de noiva, a arrumar a mala
para a lua de mel e depois teceu as roupinhas da maternidade de cada um dos
bisnetos. Foi onipresente na vida de Camila.
Um dia, a caminho de um centenário de existência, dona
Brenda se foi.
Camila sentiu tanto, tanto...
O tempo passou, mil coisas aconteceram, boas e más,
empolgantes e chatas, cansativas e serenas, enfim, desse jeito mesmo que
costuma ser a vida das pessoas.
Dona Brenda sempre dizia que Camila tinha uma graça especial
e ela foi quase bonita, depois simpática e finalmente... virou uma cópia
perfeita da avó.
Quando acordava pela
manhã e se olhava no espelho era a avó que via. O mesmo desenho dos lábios, os
mesmos cabelos, o mesmo corpo, até os pés eram parecidos. Nas fotografias a
semelhança era ainda maior, de frente, de lado, de costas, era sempre a figura
de dona Brenda que aparecia nas fotos de Camila. Quem não conhecera a avó,
bastava olhar para a neta que ficava conhecendo ali mesmo.
E a história não parava por aí. Camila agora também tinha
netas. Uma se parecia fisicamente com ela, outra puxara seu apego pelo piano e
pelos livros e a maiorzinha fora criada por ela, sempre junto, como ela tinha
sido com a sua avó.
A roda da vida permite essas ressurreições e a imortalidade
acontece nessas relações de parentesco que transcendem a biologia e se tornam
plenas na convivência e no exemplo.
Ainda bem!
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