Na minha infância, quando as estradas não eram nada boas,
poucas famílias viajavam de carro. Os ônibus iam aos solavancos, levantando
muita poeira, que entrava na cara da gente pelas janelas abertas. Isso quando
não furava pneu, ou tinham que colocar correntes nas rodas para andar nas
estradas de terra depois de muita chuva. Era uma maratona demorada e os enjoos
eram frequentes pelo cheiro do óleo entrando pelas janelas.
Por tudo isso, bom mesmo era viajar de trem!
Começamos na velha Maria Fumaça, com bancos de madeira e o Chefe
de Trem picotando os bilhetes com seu alicate. Os bancos viravam e as famílias
podiam viajar uns de frente para os outros, embora não se recomendasse a viagem
de costas para quem enjoava muito. As janelas podiam ser abertas e muitos
imprudentes perderam os braços, ou foram arrancados de dentro do trem em alguma
ponte por tentarem viajar olhando para fora.
Os restos das merendas, papéis e outros lixos eram jogados
pela janela do trem e, às vezes, entravam numa janela mais atrás sujando as
pessoas que admiravam a paisagem. Este, aliás, era um hábito muito comum e
condenável. As pessoas jogavam lixo nas ruas, pelas janelas dos carros e as
crianças descartavam os papéis de bala e de picolé no chão mesmo.
O apito e os rolos de fumaça da máquina eram festejados nas
estações, onde não faltava o sino batido pelo Agente da Estação, que avisava da
chegada do comboio e também da sua partida. Nas plataformas ficavam os parentes
e amigos acenando até o trem desaparecer.
Depois veio o Minuano e o Pampeiro, mais confortáveis, mais
rápidos, com assentos estofados e até carro restaurante. A velha Maria Fumaça
foi substituída por locomotivas movidas a óleo diesel, até chegarem aos trens
elétricos, nos quais não logrei ainda viajar. Por último chegou o Húngaro, que
aprimorou mais ainda o interior dos vagões e sua eficiência. Nesse, meus filhos
pequenos chegaram a viajar. Dessa forma, viajar de trem continuava sendo uma
grande opção, mesmo depois que as estradas e os ônibus se modernizaram.
Havia ainda um vagão de leitos, onde os passageiros podiam
viajar deitados em suas cabines. E um grande entroncamento de trens em Cacequi
e Santa Maria, com trilhos e vagões, de carga e de passageiros, indo nas mais
diversas direções. Ali, durante o tempo que os trens ficavam parados esperando
autorização para seguir, subiam ambulantes vendendo de tudo um pouco, até mesmo
relhos e rebenques. Era preciso muito planejamento para evitar acidentes. Nesse
tempo, muitas famílias de ferroviários acompanhavam as linhas, tinham vilas e
cooperativas e ostentavam com orgulho seus uniformes na cor caqui.
Lembro-me de muitas viagens, muitas histórias, desde bem
pequena até já casada e com filhos. Entre os vagões, quando se passava de um ao
outro, tinha toda aquela adrenalina do descompasso entre eles, parecendo que
iam se descarrilar sob aquele piso se mexendo pra lá e pra cá. Embora fosse
proibido, não tinha como resistir a dar uma paradinha ali, olhando para fora na
portinhola baixa, numa aventura perigosa e emocionante, com o risco de ser
atingido por uma faísca da máquina cuspindo fumaça.
Minha avó, que não gostava de pouca coisa, preparava uma
cesta com tudo o de mais gostoso que sua cozinheira sabia fazer, um farnel de
dar inveja à corte! Desde matambre recheado, frango a passarinho, doces cristalizados,
sanduíches de tudo que é jeito, pastéis bem recheados, enfim, uma orgia
gastronômica. As pessoas próximas ficavam babando pelos aromas da cesta da vovó
e, mal o trem dava os primeiros solavancos, a gente já sentia uma fome
repentina. E começava a festa!
Além do exagero de comida, minha querida avó também
exagerava na bagagem. Como se não bastassem as pesadas malas de fole repletas
de roupas e sapatos, ela levava ainda uma enorme chapeleira! E quem carregava
tudo era o meu pai, que não era filho e sim genro, pois imagina se uma mulher
ia se prestar para pegar malas, ainda mais sem rodinhas! Quando rememoro as
cenas das nossas viagens, com três crianças e uma madame carregando o
guarda-roupa inteiro, além das cestas de piquenique... dou ainda mais valor ao
meu pai! Mesmo com esse trabalhão todo, passávamos vinte e um dias por verão
nas estações de águas de Iraí, onde minha avó não repetia roupa no jantar e meu
pai ainda estava sempre empolgado com a viagem, ajudando a fechar malas,
carregando e se sentindo feliz no hotel com a gente.
Assim como os trens, que não se entende por que deixaram de
transportar passageiros, os homens e mulheres também mudaram bastante,
misturaram seus papéis, embaralharam tudo e não se sabe se isso foi bom ou
ruim.
O que eu sei é que estão bem vivas na minha memória as
lembranças das rodas de ferro nos trilhos, do apito nas curvas, do frenesi nas
plataformas, da alegria de todos naquelas viagens memoráveis!
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