segunda-feira, 9 de maio de 2016

ADAPTAÇÃO



                       Manhã de outono. Cinzenta. Fria. Com cara de segunda-feira.
                       Nas coberturas de luxo e mansões dos elegantes e seguros condomínios residenciais, as pessoas se mexem na cama, ajustam a venda nos olhos e viram para o outro lado na cama macia e perfumada.
                      Nos prédios da classe média trabalhadora já invade o aroma do café fresco, do creme dental, do sabonete no chuveiro. Crianças sonolentas são tiradas da cama, com mimos e incentivos, convencendo-as de que o sacrifício de sair da cama quentinha e ir para a escola vai lhes garantir um futuro promissor, uma vida folgada, viagens de sonho.
                     Os carros saem das garagens e enfrentam o trânsito, com portas e vidros bem fechados, rádio ligado, música para acordar, ou relaxar.
                     Empregadas domésticas e babás assumem seus postos nas casas abandonadas, garantindo um regresso confortável para as famílias dos mais abastados.
                     Os mais ricos são despertados suavemente no meio da manhã, com paparicos dos empregados bem pagos, quitutes sofisticados em que eles mal vão tocar para não perder a forma, TV ligada nos programas da manhã e nas fofocas sociais, banho de espuma, cara de tédio, futilidades.
                    Na classe que trabalha mais e ganha menos o serviço será feito quando eles voltarem exaustos para casa, muitas vezes gerando brigas e discussões, por terem tanto pra fazer e se sentirem tão cansados, depois de oito horas de trabalho e um trânsito infernal. As crianças irritadas, querendo atenção, as redes sociais cobrando e metralhando com besteiras e os educadores pintando a família perfeita, tão diferente de tudo o que eles conseguem ter.
                     Os pobres levantam de madrugada, arrancam as crianças da cama e saem arrastando a prole pelas ruas ainda desertas, só o menor ao colo e os outros caminhando tão rápido quanto suas perninhas pequenas conseguem. Despejados na creche mais próxima, sem beijos, sem carinhos, apenas como mais um fardo, além de todos que carregam na vida.  Passarão o dia recebendo ordens, reprimendas, cobranças, comendo a comida fria que prepararam na noite anterior e colocaram no fundo da mochila, uma banana para o lanche, um pão dormido e o longo regresso para pegar os filhos na creche e começar tudo de novo.
                       Tanto uns quanto outros pensam nas contas a pagar, no mês cada vez mais curto, no dinheiro que nunca chega ao fim do mês para o pobre e não cobre todos os supérfluos da classe média. O rico só se preocupa se ganhar um pouco menos nos seus investimentos.
                     Os miseráveis nem conseguem emprego, porque são fracos, maltrapilhos, analfabetos e não se prepararam para exercer nenhuma função além da mendicância. Dormem nas praças, nos viadutos e afogam na cachaça barata as últimas dores que ainda conseguem sentir.
                    A manhã de outono começa e da minha janela de aposentada, esperando os netos para estudar, repito para mim mesma a frase célebre de um título-filme de um clássico de Hollywood:
                   “E assim caminha a humanidade...”




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