terça-feira, 6 de novembro de 2012

ESPELHAMENTO



Gostaria de dizer que nasci num ano bissexto, embora não saiba exatamente no que isso contribuiria para tornar minha existência mais interessante. Na verdade, nem sei se o ano em que minha mãe me trouxe ao mundo era bissexto ou não, nunca tive a curiosidade de procurar saber. Também não sei que fatos históricos sucederam na época, mesmo porque, para um recém-nascido essas coisas não costumam ter importância. O fato é neste mesmo ano nasceram meus melhores amigos, aqueles que estudaram longos anos comigo, tiraram título de eleitor e habilitação para dirigir na mesma época. Casamento já foi diferente, poucos se aventuraram tão cedo e alguns até hoje fogem do compromisso. Poucos morreram, ainda bem!
Demorei a me dar conta da minha pouca beleza, uma vez que, sendo a única mulher numa família de predominância masculina, era sempre tão enfeitada que até compensava a falta de atributos naturais. Na adolescência comecei a brigar com os cabelos crespos e este foi o único defeito que me incomodou durante muito tempo. O resto não me atrapalhava.
Na idade adulta, quando aprendi a cuidar dos cabelos, descobri que havia gente muito mais feia e que minhas curvinhas até que estavam no lugar certo, além de não ter barriga e nunca parecer gorda.
Quando cheguei ao topo e iniciei a descida, aí sim os defeitos afloraram e a cada dia parece que surgia um novo, só pra testar minha autoconfiança, ou me punir pela vaidade que durante anos senti.
Dei-me conta, então, que meus olhos já não eram amendoados e, sim, empapuçados, difíceis de maquilar. Eu queria ter olhos grandes, enormes, com aquelas pálpebras capazes de ostentar um arco-íris. Cílios longuíssimos, curvados naturalmente, formando uma verdadeira cortina de veludo para o olhar. Não é romantismo não, eles existem!
Queria ter pernas finas, capazes de cruzar em S, barriga chapada e bundinha pequena. Ah, cabelos sedosos, escuros, cacheados, cheios de brilho e sobrancelhas cerradas, quase uma Malu Mader.
Gostaria também de usar sapatos maiores e mais largos que os pés, sem perder a elegância, ou precisar rezar pra festa acabar logo.
Futilidade? O que importa é o que temos por dentro? Balelas! Nessa etapa da vida já deixamos de acreditar nessas frases de auto-ajuda, o que é pior; em contrapartida, também não damos muito valor às críticas e comentários, o que é bem melhor.
Minha vida amorosa sempre se constituiu num grande faz-de-conta. Os grandes amores foram platônicos, ou à distância e os reais deixaram muito a desejar. Culpados? Não sei. Quem sabe eu mesma.
O verdadeiro sentido da minha vida baseou-se em dois tripés: os pais e a avó de onde eu vim e os filhos que coloquei no mundo. Eles movimentaram a roda da minha existência e justificaram todo o resto.
Fui muitas coisas pela metade, não tive grandes sonhos e ambições e, do pouco que quis, não concretizei quase nada. A verdade é que nunca fui uma prioridade para mim mesma, estive sempre a serviço. Adiei planos, acomodando-os à vontade e possibilidade de quem estava comigo e acabei por frustrar quase todos eles; os que realizei ficaram incompletos.
Quando desisti do cigarro e do amor, dediquei-me ao vinho e à boa mesa e adquiri um corpo disforme e avantajado, mais coerente com minhas frustrações.
Sou apaixonada pelas letras, pela palavra escrita, pelos livros. Para mim, a linguagem é como um fio inesgotável com o qual teço a vida, ao contá-la. Se não escrever, não aconteceu. No papel, na tela do computador verto o néctar mais puro da minha alma e até as mentiras, as invenções carregam mais autenticidade do que o som que sai dos meus lábios.
Minha maior vaidade é a literária. Quando alguém elogia meu texto é como se a varinha mágica da fada madrinha da Cinderela me iluminasse completamente, com sapatinho de cristal e tudo!
Medos, não tenho muitos. De alguns bichos, principalmente dos que possuem veneno ou dentes afiados; de tormenta, de bandido armado e gente ruim. Agora, medo paralisante mesmo só de perder filho, ficar cega ou sofrer de alguma doença torturante ou incapacitante, dependendo dos outros até para tomar meus banhos diários. Tenho pavor também de viver caducando, sem possibilidade de refletir a vida.
Morei um terço da minha vida na minha terra natal e até hoje conservo os hábitos, o sotaque e os amigos que deixei lá. Não adquiri nada novo daí em diante.
Lágrimas? Gastei todas quando perdi meu irmão para as drogas e para os falsos amigos. Hoje só choro diante do belo, do artístico, do perfeito.
Homens? Ah, dependem em grande parte dos nossos hormônios. Não podem ser burros, tem que ter pegada e beijar bem. Além disso, devem gostar do toque, do cheiro da pele, do olho no olho. O resto é resto.
Paixão? Hoje só pelos filhos e pelos netos, cada centímetro deles. Além dessa paixão visceral, só pela literatura, pelo piano e pelo balé. Poderia dizer pelas artes em geral, no entanto, não me sinto capaz de fingir admiração por alguns quadros e poemas que não me dizem nada, nem despertam a minha sensibilidade.
Acredito que o texto deixa de nos pertencer no momento em que o revelamos. Por isso, tire suas próprias conclusões, duvide, acredite, concorde, discorde, recomende ou jogue no lixo. É seu. Não me pertence mais.




 

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