sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Voltando ao tema "mulheres"


MADAME BOVARY & NANA CAYMMI

Como?! Que disparate é este? Como relacionar duas mulheres tão distintas, que viveram em épocas tão distantes? Emma Bovary viveu no princípio do século XIX e Nana ainda vive no século XXI. E daí? Não são mulheres? Humanas? Então tudo é possível.
Já estabeleci um paralelo entre o teatro grego e a dramaturgia rodriguiana (e a banca aceitou!); relacionar estas duas mulheres, portanto, não me parece tarefa tão impossível, dependendo do enfoque que se dê à análise.
 O que me intriga é a busca incessante pela paixão, pelo amor romântico, dificilmente encontrável no casamento, depois de certo tempo.
Madame Bovary sentia-se esvaziada dela mesma, sufocada pelo entediante amor de seu marido, um médico interiorano completamente acomodado à vida pacata, aos clientes, à mesmice. Emma aprendeu sobre o amor lendo incontáveis livros de literatura sentimental no convento onde foi educada. Como Dom Quixote, que leu romances de cavalaria demais e pôs-se a guerrear com moinhos, ela tenta dar vida e paixão à sua existência, no que se revelará uma sucessão de erros e uma descida ao inferno.
Gustave Flaubert (1821-1880), o criador do romance mais famoso do século de ouro do romance, identificou-se tanto à personagem, “sentiu” tanto suas inquietações que chegou a afirmar: “Emma Bovary c’est moi”. É instigante o esmero do autor em vasculhar a mente e as aflições de sua personagem, principalmente se analisarmos o contexto histórico e social da época e o tipo de mulheres que a sociedade criava (mesmo a francesa) e o que esperava delas.
Em se tratando de Nana Caymmi, ela afirmou numa entrevista que “eu só queria que meus filhos tivessem uma mãe feliz. Gosto de namoro, noivado, cerimônias, mas, na volta da lua-de-mel, já não vejo mais encanto. Foram onze maridos, vivi todos intensamente. Se juntasse todos num só, seria o homem ideal”. Tudo indica que a cantora também está presa ao amor romântico, à paixão idealizada, à fuga da realidade.
A heroína de Flaubert descreve magnificamente o vazio de sua existência: “As outras existências, por mais insípidas que fossem, tinham, pelo menos, a possibilidade do inesperado. Uma aventura trazia consigo, às vezes, peripécias sem fim, o cenário transformava-se. Mas para ela nada surgia, era a vontade de Deus! O futuro era um corredor escuro, que tinha, no extremo, a porta bem fechada. (...) Para que havia de tocar? Quem é que a ouvia? E como nunca lhe seria possível, de vestido de veludo de manga curta, em um piano Érard, tocar, num concerto, com os dedos ligeiros nas teclas de marfim e sentir, como uma brisa, passar-lhe em torno um murmúrio de êxtase, não valia a pena aborrecer-se com o estudo. Deixou no armário as suas pastas de desenho e os bordados. Para que aquilo tudo? De que serviria? A costura irritava-a. – Tenho lido tudo – dizia para si mesma; e punha-se a esquentar as tenazes ou a ver a chuva cair”.
Flaubert não poderia reservar à Emma um destino diferente da morte. Não teria escapatória a mulher que ousasse sentir, que não desistisse dos sentidos por conta do casamento. Esta pecadora TINHA que ser castigada, sob o risco do romance perder a verossimilhança.
E Madame Bovary, após mais uma desilusão amorosa, toma arsênico e morre. Na extrema unção ela cola seus lábios ao crucifixo e deposita nele o maior beijo de amor que já dera. O padre ungiu-a “primeiro sobre os olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades mundanas; depois sobre as narinas, gulosas de brisas tépidas e de perfumes amorosos; depois sobre a boca, que tanto se abrira para a mentira, que tanto gemera de orgulho e gritara de luxúria: depois sobre as mãos, que se deleitavam com os contatos suaves, e, finalmente, na planta dos pés, outrora tão velozes quando corriam a saciar os desejos e que agora nunca mais tornariam a caminhar”.
Nana, dois séculos depois, continua sem solução para sua busca amorosa. E também não é feliz: “Você não faz idéia de como é o meu drama. Fico me perguntando por que preciso sofrer tanto com isso. Não sou judia, não crucifiquei Jesus! Não é possível que tenha solução para todo mundo, e eu não tenha esperança”.
Mulheres...


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