quarta-feira, 24 de agosto de 2011

DOAÇÃO DE ALMAS

                             
As leis brasileiras, vez por outra, esbarram em problemas etimológicos, como se os legisladores tivessem enforcado muitas aulas de português. Confundem-se, assim, professor (aquele que ensina) com mendigo; direito do voto com dever e cabresto; doação com obrigatoriedade.
Pronto! Conseguiram, mais uma vez, estragar tudo. Anularam a nobreza e o altruísmo do gesto de "doar" com uma lei antipática de retirada compulsória dos órgãos de qualquer pessoa que o médico ache que morreu. Logo no Brasil, onde não se respeita os vivos, o que esperar dos mortos ou semimortos?
Que mania esses fazedores de leis têm de governar de cima para baixo, importando conceitos desacreditados, idealizando situações (basta ver o Novo Código de Trânsito que nem mesmo os censores entendem!), tratando as pessoas com meras teorias desvinculadas totalmente da prática.
Não passa pela cabeça de tais mandachuvas que só a Educação - para o trânsito, para a prevenção de doenças, para a justiça, para a solidariedade - pode mudar efetivamente a situação caótica do Brasil? Meio-ambiente, poluição, doenças sexualmente transmissíveis, mortes no trânsito, justiça no trabalho, tudo poderia ser melhorado com uma educação adequada de todas as crianças e jovens. Do contrário, com medidas terapêuticas ao invés de preventivas, ficarão sempre as perguntas desconfiadas: - Então nós, que já somos sem terra, sem teto, sem educação, sem saúde, sem segurança, sem governo, sem economia, sem esperança, vamos perder o direito sobre os nossos próprios corpos, dos quais cuidamos (bem ou mal) sozinhos a vida toda?!
No meu caso, carrego há dez anos na carteira um cartão que me transformava (pelo menos aos meus olhos) num ser humano maior, mais completo, mais próximo do Céu - um cartão que diz "Sou Doador de Órgãos", da Fundação Pró-Rim. Minha família sabia e meus filhos me admiravam por isso. Era um desejo meu, uma opção minha, uma pequena grandeza diante de tantos casos realmente tristes de pessoas nas filas dos transplantes, à espera de doadores. Mas doação compulsória não existe e eu não aceito!
Quando todo mundo passa automaticamente a doador, eu, doadora em potencial há dez anos, estou bem inclinada a colocar a observação vergonhosa na Carteira de Identidade, negando a doação.
Como confiar nas leis, na justiça, na honestidade dos destrambelhados legisladores brasileiros? Depois de ler os jornais? Não dá!
Assim como só as classes média e baixa vão para a cadeia, será que também elas deverão fornecer órgãos para os ricos, para as clínicas particulares? E os médicos inescrupulosos e mal preparados, que são minoria mas existem?!
Por tudo isso, eu queria sugerir às pessoas que se interessassem mais por "doações de almas". Por que não almejar a Bondade de Irmã Dulce, a Solidariedade de Betinho, a Coragem de Tiradentes, o Talento de Machado de Assis e assim por diante? Por que ninguém se preocupa em transplantar, ou simplesmente copiar um pouco da "essência" de algumas pessoas tão significativas para a humanidade?
Um homem não vive sem rim, mas vive sem inteligência, sem dignidade, sem vergonha. Infelizmente.
Talvez fosse bom pensar um pouco na parte mais importante do ser humano, naquilo que nos difere dos outros animais, ao invés de canalizar toda a atenção para um possível "frigorífico de órgãos", clones humanos e por aí afora.
Com uma adequada "doação de almas" as leis seriam mais justas e melhor cumpridas. E é bom lembrar: de que vale um corpo são numa cabeça oca e num coração de pedra?





Um comentário:

Gilda Souto disse...

Irretocável,maravilhoso!Parabéns!