sexta-feira, 29 de março de 2019

LEMBRANÇAS



  Este conto recebeu o primeiro Lugar no Concurso da CLIP Mulher e está publicado na Coletânea Conexão Brasil 2019.



                             Numa preguiça macunaímica, peculiar às tardes de domingo, semicerra os olhos e vai abrindo, de par em par, as portas das suas lembranças.
                             A memória é um vasto rio sem margens e nele navegamos quase à deriva, empurrados de um lado para outro, levados pela correnteza dos pensamentos, desviando dos galhos, tentando manter o curso naqueles mais suaves, mais amenos, mais saborosos.
                             Ninguém nunca será capaz de se separar do próprio passado, de suas próprias memórias ou da terra sobre a qual aprendeu a andar.
                             Voltando à velha casa, onde deixara sua alma aprisionada por tanto tempo, percebia que nada mudara... mas, com certeza, tudo mudara.
                             Assim como o que faz uma igreja é o sossego que mora lá dentro, o que faz uma casa são as pessoas que a habitam, pois as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o teto. A casa da infância é como um rosto de mãe: contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o tempo. Tudo nela é mágico, cheio de significado.
                            Ela caminha lentamente pelos cômodos vazios, acariciando as paredes por onde escorrem vozes e risadas das pessoas mais importantes da sua meninice, revendo móveis e objetos que já não se encontram ali, porém estão muito vivos nas suas lembranças. Parece ouvir o piano, a cozinheira batendo bifes na mesa de madeira da cozinha, a enceradeira brilhando o piso desenhado de parquê, a mãe de roupão tomando a lição dos três filhos, a avó dando ordens na casa e na cozinha e o pai chegando dos bancos, com sua pastinha de couro debaixo do braço, de calça social e camisa de dois bolsos e os óculos Ray-Ban de piloto, reclamando do café na cama que os filhos tomavam nas férias escolares e os chamando, com ar de deboche, de “príncipes arruinados”. Está tudo ali, muito claro, muito vivo, colado naquelas paredes altas, onde até para trocar uma lâmpada era preciso colocar a escada comprida.
                            As estantes da sala cheias de livros caprichosamente encapados, cada quarto com suas prateleiras cheias de livros também, além da escrivaninha com os livros escolares, lápis, caneta e papel para todo lado.
                            As fotografias sisudas nas paredes, como se sorrir fosse pecado, a mesa comprida sempre cheia de comida em todas as refeições, que só começavam quando toda a família se sentava em volta dela. Água gelada e sobremesa diariamente e refrigerantes só nos aniversários. Ninguém levantava antes de todos terminarem de comer.
Com uma sensação estranha, de plenitude e ausência, ela segue abrindo portas, descendo degraus até chegar ao pátio. Um jardim, um pomar e uma horta que atravessavam a quadra e iam até a rua debaixo. Flores, árvores frutíferas, galos, galinhas e ninhadas de pintinhos ciscando o tempo inteiro. Cachorros e gatos sem raça definida, sem mimos nem dietas balanceadas, no entanto, grandes companheiros.
                             Senta na borda de um canteiro, aspira o perfume dos jasmins, relembra das travessuras de duas gerações ali mesmo, chega a ouvir as vozes, o alarido e as reprimendas.
                             Caminha até a garagem, que não abrigava carro algum, já que o pai só gostava de aviões, mas foi abrigo de um grande barco construído pela criançada e também palco de várias peças de teatro, encenadas pelo irmão caçula, além de um esconderijo seguro para as artes boas e más da meninada.
                             Levanta os olhos para os muros, que nunca impediram a passagem das crianças mais ousadas e para o velho cinamomo que os recebia até nos galhos mais altos.  O galpão, as mesas de pedra onde depenavam as galinhas e quaravam as roupas, os varais de arame sempre cheios, a máquina de costura pedalada pelos pés ágeis e pequenos da mãe, o ferro de brasa para passar roupa, a máquina de moer carne, o fogão à lenha, o chuveiro com caldeira, a grande banheira, o tanque enorme que servia até de piscina para os pequenos, o quarto da empregada, fora de casa, que depois virou dispensa, depósito e sala de aula para seus primeiros aluninhos particulares. Os sapatos Vulcabrás secando atrás do fogão depois de um banho de chuva na volta da escola. Tudo passa em câmera lenta diante dos seus olhos...
                             O corredor comprido, que dava medo de percorrer no escuro à noite. O hall de entrada, testemunha dos primeiros beijos furtivos. As vozes, os cheiros, as sensações, está tudo ali, cristalizado entre aqueles muros altos, abandonados.
                            Pisando o mesmo chão que recolheu seus pulos de alegria e de sucesso, que sugou suas lágrimas, que ralou seus joelhos, que acolheu os gritos da sua mãe chamando para almoçar ou para estudar, as confidências das suas amigas, enfim, tudo de mais significativo que compôs sua existência nesse quadrante mais feliz, ela caminha devagar em direção à porta de entrada... não notou nenhuma mudança na casa, no pátio, na distribuição dos móveis, porque simplesmente não os viu... estava apenas olhando com o coração.




Um comentário:

Francisco Carlos D'Andrea (francari) disse...

Cheiro de infância, sabor de juventude!
"Que doce a vida não era nesta risonha manhã?"