sábado, 17 de fevereiro de 2018

VIAGEM DE TREM



                         Na minha infância, quando as estradas não eram nada boas, poucas famílias viajavam de carro. Os ônibus iam aos solavancos, levantando muita poeira, que entrava na cara da gente pelas janelas abertas. Isso quando não furava pneu, ou tinham que colocar correntes nas rodas para andar nas estradas de terra depois de muita chuva. Era uma maratona demorada e os enjoos eram frequentes pelo cheiro do óleo entrando pelas janelas.
                         Por tudo isso, bom mesmo era viajar de trem!
                         Começamos na velha Maria Fumaça, com bancos de madeira e o Chefe de Trem picotando os bilhetes com seu alicate. Os bancos viravam e as famílias podiam viajar uns de frente para os outros, embora não se recomendasse a viagem de costas para quem enjoava muito. As janelas podiam ser abertas e muitos imprudentes perderam os braços, ou foram arrancados de dentro do trem em alguma ponte por tentarem viajar olhando para fora.
                         Os restos das merendas, papéis e outros lixos eram jogados pela janela do trem e, às vezes, entravam numa janela mais atrás sujando as pessoas que admiravam a paisagem. Este, aliás, era um hábito muito comum e condenável. As pessoas jogavam lixo nas ruas, pelas janelas dos carros e as crianças descartavam os papéis de bala e de picolé no chão mesmo.
                         O apito e os rolos de fumaça da máquina eram festejados nas estações, onde não faltava o sino batido pelo Agente da Estação, que avisava da chegada do comboio e também da sua partida. Nas plataformas ficavam os parentes e amigos acenando até o trem desaparecer.
                        Depois veio o Minuano e o Pampeiro, mais confortáveis, mais rápidos, com assentos estofados e até carro restaurante. A velha Maria Fumaça foi substituída por locomotivas movidas a óleo diesel, até chegarem aos trens elétricos, nos quais não logrei ainda viajar. Por último chegou o Húngaro, que aprimorou mais ainda o interior dos vagões e sua eficiência. Nesse, meus filhos pequenos chegaram a viajar. Dessa forma, viajar de trem continuava sendo uma grande opção, mesmo depois que as estradas e os ônibus se modernizaram.
                       Havia ainda um vagão de leitos, onde os passageiros podiam viajar deitados em suas cabines. E um grande entroncamento de trens em Cacequi e Santa Maria, com trilhos e vagões, de carga e de passageiros, indo nas mais diversas direções. Ali, durante o tempo que os trens ficavam parados esperando autorização para seguir, subiam ambulantes vendendo de tudo um pouco, até mesmo relhos e rebenques. Era preciso muito planejamento para evitar acidentes. Nesse tempo, muitas famílias de ferroviários acompanhavam as linhas, tinham vilas e cooperativas e ostentavam com orgulho seus uniformes na cor caqui.
                          Lembro-me de muitas viagens, muitas histórias, desde bem pequena até já casada e com filhos. Entre os vagões, quando se passava de um ao outro, tinha toda aquela adrenalina do descompasso entre eles, parecendo que iam se descarrilar sob aquele piso se mexendo pra lá e pra cá. Embora fosse proibido, não tinha como resistir a dar uma paradinha ali, olhando para fora na portinhola baixa, numa aventura perigosa e emocionante, com o risco de ser atingido por uma faísca da máquina cuspindo fumaça.
                           Minha avó, que não gostava de pouca coisa, preparava uma cesta com tudo o de mais gostoso que sua cozinheira sabia fazer, um farnel de dar inveja à corte! Desde matambre recheado, frango a passarinho, doces cristalizados, sanduíches de tudo que é jeito, pastéis bem recheados, enfim, uma orgia gastronômica. As pessoas próximas ficavam babando pelos aromas da cesta da vovó e, mal o trem dava os primeiros solavancos, a gente já sentia uma fome repentina. E começava a festa!
                           Além do exagero de comida, minha querida avó também exagerava na bagagem. Como se não bastassem as pesadas malas de fole repletas de roupas e sapatos, ela levava ainda uma enorme chapeleira! E quem carregava tudo era o meu pai, que não era filho e sim genro, pois imagina se uma mulher ia se prestar para pegar malas, ainda mais sem rodinhas! Quando rememoro as cenas das nossas viagens, com três crianças e uma madame carregando o guarda-roupa inteiro, além das cestas de piquenique... dou ainda mais valor ao meu pai! Mesmo com esse trabalhão todo, passávamos vinte e um dias por verão nas estações de águas de Iraí, onde minha avó não repetia roupa no jantar e meu pai ainda estava sempre empolgado com a viagem, ajudando a fechar malas, carregando e se sentindo feliz no hotel com a gente.
                           Assim como os trens, que não se entende por que deixaram de transportar passageiros, os homens e mulheres também mudaram bastante, misturaram seus papéis, embaralharam tudo e não se sabe se isso foi bom ou ruim.
                          O que eu sei é que estão bem vivas na minha memória as lembranças das rodas de ferro nos trilhos, do apito nas curvas, do frenesi nas plataformas, da alegria de todos naquelas viagens memoráveis!



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