quarta-feira, 28 de outubro de 2020

PERFIL FALSO

 

A causa do suicídio ainda seria aquele espelho. Custou tão caro, ficou tão bonito, mas se transformou num algoz impiedoso e provocador, que parecia sorrir da imagem totalmente desfeita que lhe oferecia a cada vez que passava por ele.

A vida sem espelhos seria bem mais leve. Nem o corpo avantajado pesava tanto quanto aquela coisa velha e disforme que encontrava diante de si a cada vez que se aproximava do maldito espelho. Parecia a madrasta má da Bela Adormecida, querendo exigir do espelho uma beleza que não tinha, que nunca tivera e que agora já não sabia mais como falsificar.

O velho computador, o telefone celular pago em muitas prestações, a internet de pouca potência, nisso residia o pouco encanto daquela vida insípida, a safra perdida de uma colheita merecida das escolhas mal feitas. Quando conseguia se conectar às redes sociais e, principalmente, aos sites de encontros, renascia como a deusa que quisera ser, com todos os atributos físicos e o conforto luxuoso que nunca tivera e que sabia que jamais teria ao seu alcance. Ali nascia a outra, o reverso de tudo, a criação mais fértil da sua imaginação. Tudo que odiava em si descartava completamente e se vestia de sonhos, de desejos, de belezas inatingíveis fora daqueles momentos. E ali chegava muito perto do que costumavam chamar de felicidade.

Fora uma boa aluna, até mesmo porque lhe sobrava tempo para estudar já que nenhum rapaz a convidava para sair ou namorar. As outras meninas não queriam andar ao lado de alguém tão deselegante, mal vestida, sem graça, sem entusiasmo. Agora essa reclusão forçada servia para alguma cosia, já que sabia escrever direito e tinha certa cultura. Assim podia encantar mais seus pretendentes, além das fotos lindas que mostrava a eles, do corpo perfeito, do cabelo sedoso e de todas as coqueterias que imitava das revistas sobre os artistas famosos. Sua chegada nos sites era sempre festejada e dava-lhe um gosto imenso se ver disputada por tantos homens interessantes, até por algumas mulheres, que a esperavam e imploravam um encontro.

Madrugada adentro mentia, excitava, provocava, mostrava as fotos cada vez com menos roupas, ameaçava ir embora, sumir, para ver o desespero deles, negava o número do telefone, se dizia em dúvida, comprometida, precisando tomar decisões e dando risadas histéricas do desejo deles escorrendo pela tela, enquanto esquecia da triste figura que fazia e da feiura crescente que a consumia com o passar do tempo.

Repleta do amor declarado pelos interlocutores, se sentindo poderosa envolta nos elogios que recebia noite após noite, ela arrastava os chinelos gastos pelo chão imundo, sacudindo aos farelos da velha blusa de lã cheia de fiapos e se dirigia à torneira com o remédio para dormir, pois senão o sono não viria. Era deusa, era ninfa, era o alvo do desejo de todos aqueles homens, que a disputavam nas madrugadas e sentiam sua falta, imaginavam seu beijo, tocavam seus cabelos longos, sentiam seu perfume, pelas fotos e discrições, por tudo que era oferecido, prometido, adiado.

Coçando a cabeça de cabelos ralos e crespos, bocejando ruidosamente, apagava as luzes e se dirigia ao quarto úmido e escuro, com cheiro de velha. Tirava a roupa jogando tudo pelos cantos para colocar uma camisola manchada e larga, gemendo de frio. Deitada, ainda com um resto de sorriso no canto da boca mal desenhada, lembrou da luz acesa e da conta cada mês mais cara. Levantou da cama baixa e desconfortável com dores nos joelhos, sentindo ainda mais frio apesar das meias coloridas nos pés e se dirigiu ao interruptor para apagar a luz.

 Foi nesse exato momento que passou diante dele. Do cruel, maldito, algoz impiedoso. E lá estava ela, uma triste figura de corpo inteiro no espelho, que parecia sorrir debochado diante de tanta deformidade.

Lentamente, procurou a tranca de ferro que guardava debaixo da cama como arma contra ladrões e brandiu com ódio diante da imagem que lhe imitava o gesto. Golpeou duas, três vezes o espelho até que o desfez em cacos afiados espalhados por todo lado.

Gemendo deitou, dormiu e no dia seguinte, com a boca ainda amarga começou a pensar no que diria à noite para seus admiradores. Será que mostraria um penteado diferente, quem sabe uma nova lingerie?

Riu sem dentadura mesmo...


 

 

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