Este conto também está no livro DECIFRA-ME, junto a muitos outros.
“Quando alguém mergulha nas próprias
recordações, abre uma porta para o passado; a estrada lá dentro tem muitas
ramificações e a cada vez o trajeto é diferente.”
XINRAN
- Vó, do que você sente saudade? Perguntam aqueles olhos expressivos,
emoldurados pelo rosto angelical e o queixo altivo, desafiador.
- Ah, minha neta, quer mesmo saber? Então, puxe o fôlego até
o fim e ouça...
Tenho saudades de mim, daquela menina curiosa que prestava
atenção em tudo e parecia querer devorar o mundo de uma só vez; das pessoas que
moravam na casa, cada uma com seu jeito, suas manias, sua voz, sua forma de
pensar e até do atrito que, vez por outra, acontecia entre elas; de ver meu pai
tomando chimarrão na cozinha quando eu levantava sonolenta para o colégio; da
minha mãe de camisola e roupão, caderno e lápis na mão, tomando minha lição até
que eu respondesse tudo certo, sem gaguejar; da minha avó criando delícias na
cozinha e deixando montanhas de louça suja para a empregada lavar; dos
cachorros no pátio, no tempo em que cachorro ainda tinha vida de cachorro; dos
gatos da minha mãe procurando os raios de sol para se espicharem; do meu irmão
mais velho sempre implicando comigo e com tudo o que eu fazia ou dizia; do meu
irmão mais novo sempre grudado, sempre junto, como um filho apenas quatro anos
mais moço; dos três pátios que havia na minha casa, cada um com suas delícias -
flores no primeiro, frutas no segundo e verduras no terceiro; da minha turma da
Mariz e Barros sempre brincando, sempre brigando, sempre subindo em árvores e
sempre pulando muros; da garagem da casa, onde não havia carros, mas onde a imaginação
das crianças da casa podia se materializar de diversas maneiras, como num
enorme navio construído pelo Tibério e onde nossa fantasia nos levava a navegar
por horas a fio; ou quando a mesma garagem virava palco e nela meu irmão
Eduardo apresentava peças que ele mesmo escrevia, produzia e representava; ou
ainda servia para a banda da turma 007 ensaiar, além de existir também uma mesa
de sinuca e outra de jogos de botão, sendo, portanto, a garagem a peça
fundamental da casa para seus menores habitantes; saudades do meu piano, num
tempo sem televisão nem computador, quando eu tinha tempo e disposição de
passar horas a fio descobrindo sons e aprimorando a técnica; de dançar balé
naquelas salas amplas, ao redor do meu irmão que estudava na grande mesa
redonda e ficava escolhendo os passos que queria me ver realizar; de esperar o
carteiro, sempre com muitas cartas perfumadas, de inesquecíveis amores platônicos
e amigas distantes; de sentar lá fora quando a noite chegava e ficar ouvindo as
histórias do meu pai e aprendendo o nome das constelações; saudade - muita! –
de ler sem óculos e não ter medo de um dia ficar cega; de gastar quase uma
caixa de grampos para domar a vasta cabeleira ondulada e rebelde; de colocar
alfinetes de segurança no cós das calças compridas para não caírem depois de
pouquíssimos dias de regime para emagrecer; dos telegramas – pagos por palavra
– que abreviavam a espera por uma carta; dos sapatos de verniz (especialmente
de um par de sapatos vermelhos), que sacrificavam os pés, mas rodopiavam a
noite inteira nos bailes e reuniões dançantes; do bando de normalistas – saia
azul, blusa branca e gravata – caminhando pelas ruas e praças em direção à
escola; das paqueras no Quiosque e ao redor da praça central; das mãos dadas no
cinema; dos cadernos cheios de iniciais e corações; do desfalecimento dos
primeiros beijos; da Valsa do Imperador no baile de debutantes; da Marcha
Nupcial no tapete vermelho; de amamentar os filhos, jurando protegê-los para
sempre; dos planos imensos; dos sonhos grandiosos; de achar que daria tempo de
sobra para tudo; daquele coração puro e dos olhos não maculados pelas barbáries
e desmandos do mundo moderno, enfim, da pessoa que nunca consegui ser.
-Ufa!
-Respire!
-E então? Entendeu?!
2 comentários:
Conto é aquilo que o autor denomina conto. Os teus contos são muito bons pois partem de uma crônica introspectiva e rememorativa de vida, Parabéns.
Fiquei com saudade de minha adolescência!
Ana Lúcia Carbonell Martins
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