Gostaria de
dizer que nasci num ano bissexto, embora não saiba exatamente no que isso
contribuiria para tornar minha existência mais interessante. Na verdade, nem
sei se o ano em que minha mãe me trouxe ao mundo era bissexto ou não, nunca tive
a curiosidade de procurar saber. Também não sei que fatos históricos sucederam
na época, mesmo porque, para um recém-nascido essas coisas não costumam ter
importância. O fato é neste mesmo ano nasceram meus melhores amigos, aqueles
que estudaram longos anos comigo, tiraram título de eleitor e habilitação para
dirigir na mesma época. Casamento já foi diferente, poucos se aventuraram tão
cedo e alguns até hoje fogem do compromisso. Poucos morreram, ainda bem!
Demorei a me
dar conta da minha pouca beleza, uma vez que, sendo a única mulher numa família
de predominância masculina, era sempre tão enfeitada que até compensava a falta
de atributos naturais. Na adolescência comecei a brigar com os cabelos crespos
e este foi o único defeito que me incomodou durante muito tempo. O resto não me
atrapalhava.
Na idade
adulta, quando aprendi a cuidar dos cabelos, descobri que havia gente muito
mais feia e que minhas curvinhas até que estavam no lugar certo, além de não
ter barriga e nunca parecer gorda.
Quando cheguei
ao topo e iniciei a descida, aí sim os defeitos afloraram e a cada dia parece
que surgia um novo, só pra testar minha autoconfiança, ou me punir pela vaidade
que durante anos senti.
Dei-me conta,
então, que meus olhos já não eram amendoados e, sim, empapuçados, difíceis de
maquilar. Eu queria ter olhos grandes, enormes, com aquelas pálpebras capazes
de ostentar um arco-íris. Cílios longuíssimos, curvados naturalmente, formando
uma verdadeira cortina de veludo para o olhar. Não é romantismo não, eles
existem!
Queria ter
pernas finas, capazes de cruzar em S, barriga chapada e bundinha pequena. Ah,
cabelos sedosos, escuros, cacheados, cheios de brilho e sobrancelhas cerradas,
quase uma Malu Mader.
Gostaria também
de usar sapatos maiores e mais largos que os pés, sem perder a elegância, ou precisar
rezar pra festa acabar logo.
Futilidade? O
que importa é o que temos por dentro? Balelas! Nessa etapa da vida já deixamos
de acreditar nessas frases de auto-ajuda, o que é pior; em contrapartida,
também não damos muito valor às críticas e comentários, o que é bem melhor.
Minha vida
amorosa sempre se constituiu num grande faz-de-conta. Os grandes amores foram
platônicos, ou à distância e os reais deixaram muito a desejar. Culpados? Não
sei. Quem sabe eu mesma.
O verdadeiro
sentido da minha vida baseou-se em dois tripés: os pais e a avó de onde eu vim
e os filhos que coloquei no mundo. Eles movimentaram a roda da minha existência
e justificaram todo o resto.
Fui muitas
coisas pela metade, não tive grandes sonhos e ambições e, do pouco que quis,
não concretizei quase nada. A verdade é que nunca fui uma prioridade para mim
mesma, estive sempre a serviço. Adiei planos, acomodando-os à vontade e
possibilidade de quem estava comigo e acabei por frustrar quase todos eles; os
que realizei ficaram incompletos.
Quando desisti
do cigarro e do amor, dediquei-me ao vinho e à boa mesa e adquiri um corpo
disforme e avantajado, mais coerente com minhas frustrações.
Sou apaixonada
pelas letras, pela palavra escrita, pelos livros. Para mim, a linguagem é como
um fio inesgotável com o qual teço a vida, ao contá-la. Se não escrever, não
aconteceu. No papel, na tela do computador verto o néctar mais puro da minha
alma e até as mentiras, as invenções carregam mais autenticidade do que o som
que sai dos meus lábios.
Minha maior
vaidade é a literária. Quando alguém elogia meu texto é como se a varinha
mágica da fada madrinha da Cinderela me iluminasse completamente, com sapatinho
de cristal e tudo!
Medos, não
tenho muitos. De alguns bichos, principalmente dos que possuem veneno ou dentes
afiados; de tormenta, de bandido armado e gente ruim. Agora, medo paralisante
mesmo só de perder filho, ficar cega ou sofrer de alguma doença torturante ou
incapacitante, dependendo dos outros até para tomar meus banhos diários. Tenho
pavor também de viver caducando, sem possibilidade de refletir a vida.
Morei um terço
da minha vida na minha terra natal e até hoje conservo os hábitos, o sotaque e
os amigos que deixei lá. Não adquiri nada novo daí em diante.
Lágrimas? Gastei
todas quando perdi meu irmão para as drogas e para os falsos amigos. Hoje só
choro diante do belo, do artístico, do perfeito.
Homens? Ah,
dependem em grande parte dos nossos hormônios. Não podem ser burros, tem que
ter pegada e beijar bem. Além disso, devem gostar do toque, do cheiro da pele,
do olho no olho. O resto é resto.
Paixão? Hoje só
pelos filhos e pelos netos, cada centímetro deles. Além dessa paixão visceral,
só pela literatura, pelo piano e pelo balé. Poderia dizer pelas artes em geral,
no entanto, não me sinto capaz de fingir admiração por alguns quadros e poemas
que não me dizem nada, nem despertam a minha sensibilidade.
Acredito que o
texto deixa de nos pertencer no momento em que o revelamos. Por isso, tire suas
próprias conclusões, duvide, acredite, concorde, discorde, recomende ou jogue
no lixo. É seu. Não me pertence mais.
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